quinta-feira, 25 de março de 2010

... De bruxas e borboletas.

13 de abril

Aquela manhã de outono nunca mais seria uma manhã de outono pra Pierre. Acordou cedo como sempre, olhou em volta da velha casa onde morava e constatou mais uma vez a realidade que impusera a si mesmo: ser sozinho. Tinha orgulho dessa opção e, não raramente, se vangloriava de tê-la feito. Porém, seu peito apertava de modo diferente do que aconteciam todos os dias. Sabia que alguma coisa boa ou ruim iria acontecer naquele dia. Não deu muita importância, porque afinal de contas coisas boas ou ruins são o que acontecem com qualquer cidadão normal no seu dia-a-dia.

Com gosto de uísque barato na boca e uma sensação de quero mais, levantou-se e enquanto ia ao banheiro barbear-se e fazer sua higiene matinal cumpriu seu ritual. Ligou seu computador, verificando se a internet estava devidamente conectada, ligou o rádio para ouvir notícias, e pôs o fone do mp-4 no ouvido. Nunca soube exatamente o porquê ligava para ouvir notícias se enquanto estava no banheiro ouvia suas músicas preferidas. Mas como sua companheira constante não fazia perguntas, por que, justamente ele as iria fazer?

O domingo tinha sido entediante. Sua vida, de fato, era é um tédio. O uísque havia aliviado um pouco a monotonia do dia anterior. Mas a segunda feira chegara impiedosa e cobrando suas obrigações profissionais. Porém, sabe-se lá porque, naquele dia resolveu fazer uma coisa que não fazia há anos: caminhar pelas redondezas de sua casa. Ali iniciaria a metamorfose de sua vida.

No frio típico das manhãs de outono saiu para caminhar. No seu mp-4 estava seu mundo. Fechado naquele casulo descobriu que pessoas nasciam e envelheciam com naturalidade e ele nem estava percebendo isto. Era um suicida moroso. No entanto as fisionomias das pessoas começaram a fasciná-lo de uma forma que ele sentia que alguma coisa diferente brotava na sua alma.


Subitamente o celular vibrou na sua calça. Foi atender e o aparelho caiu no chão. Ao pegar o aparelho deu conta das folhas secas que todos pisavam impiedosamente enquanto faziam sua caminhada. Sempre havia olhado este fenômeno da natureza acontecer, mas nunca tinha dado a devida importância a ele. Pegou uma folha na mão e, ainda ouvindo “Blowing in the wind”, levantou a cabeça e viu uma folha verde, nova, numa árvore.

Definitivamente a caminhada pararia ali. E foi quase isto que aconteceu. Do nada, percebeu como a vida é tudo e nada ao mesmo

Aquela manhã de outono nunca mais seria uma manhã de outono pra Pierre. Acordou cedo como sempre, olhou em volta da velha casa onde morava e constatou mais uma vez a realidade que impusera a si mesmo: ser sozinho. Tinha orgulho dessa opção e, não raramente, se vangloriava de tê-la feito. Porém, seu peito apertava de modo diferente do que aconteciam todos os dias. Sabia que alguma coisa boa ou ruim iria acontecer naquele dia. Não deu muita importância, porque afinal de contas coisas boas ou ruins são o que acontecem com qualquer cidadão normal no seu dia-a-dia.

Com gosto de uísque barato na boca e uma sensação de quero mais, levantou-se e enquanto ia ao banheiro barbear-se e fazer sua higiene matinal cumpriu seu ritual. Ligou seu computador, verificando se a internet estava devidamente conectada, ligou o rádio para ouvir notícias, e pôs o fone do mp-4 no ouvido. Nunca soube exatamente o porquê ligava para ouvir notícias se enquanto estava no banheiro ouvia suas músicas preferidas. Mas como sua companheira constante não fazia perguntas, por que, justamente ele as iria fazer?

O domingo tinha sido entediante. Sua vida, de fato, era é um tédio. O uísque havia aliviado um pouco a monotonia do dia anterior. Mas a segunda feira chegara impiedosa e cobrando suas obrigações profissionais. Porém, sabe-se lá porque, naquele dia resolveu fazer uma coisa que não fazia há anos: caminhar pelas redondezas de sua casa. Ali iniciaria a metamorfose de sua vida.

No frio típico das manhãs de outono saiu para caminhar. No seu mp-4 estava seu mundo. Fechado naquele casulo descobriu que pessoas nasciam e envelheciam com naturalidade e ele nem estava percebendo isto. Era um suicida moroso. No entanto as fisionomias das pessoas começaram a fasciná-lo de uma forma que ele sentia que alguma coisa diferente brotava na sua alma.


Subitamente o celular vibrou na sua calça. Foi atender e o aparelho caiu no chão. Ao pegar o aparelho deu conta das folhas secas que todos pisavam impiedosamente enquanto faziam sua caminhada. Sempre havia olhado este fenômeno da natureza acontecer, mas nunca tinha dado a devida importância a ele. Pegou uma folha na mão e, ainda ouvindo “Blowing in the wind”, levantou a cabeça e viu uma folha verde, nova, numa árvore.

Definitivamente a caminhada pararia ali. E foi quase isto que aconteceu. Do nada, percebeu como a vida é tudo e nada ao mesmo tempo e irracionalmente abraçou aquela árvore. Mais que isto, praticamente fez amor com aquela árvore como se quisesse fecundar mais folhas verdes nela, contrariando as regras que o outono impunha a ela. Lágrimas escorreram daqueles olhos secos e frios.

Dando conta do vexame, soltou a árvore e voltou apressadamente pra casa. Não que tivesse atrasado para o serviço. Como advogado era seu próprio patrão e ele impunha o horário a ele. Mas a vergonha da cena ridícula que havia proporcionado ás pessoas que faziam seu “jogging” pela manhã era muito mais pesada em sua consciência. Chegou em casa, tomou banho rapidamente, colocou seu terno e gravata e foi para o escritório.

Como sempre, deixou o computador e o rádio ligados. Seria aquilo uma forma de dizer ao mundo que sua alma estava presa àquela casa? Nunca ninguém soube, nem ele. Porém, no caminho prestou mais atenção ás pessoas e, principalmente, naquela árvore. Olhou-a com um carinho como nunca havia dispensado a mulher nenhuma e , sem perceber, fez um aceno com a mão como se dissesse para nova amiga: volto logo.

Entrou no escritório na mesma modorra de sempre. Nunca entendera a opção profissional que fizera mas, ainda assim, insistia em exercê-la. Sua sala era inversamente proporcional a sua casa. Impecavelmente arrumada, acarpetada, confortáveis poltronas para ele e seus clientes, estantes cheias de livros – tanto do mundo jurídico, como de clássicos da literatura universal - uma TV, telefone e, claro um computador com acesso ultra-rápido para internet.

Sempre achava os dias cansativos. Na realidade os dias eram espelho daquela alma cansada e desacretidada nos homens, no amor, na humanidade.

Porém aquele dia uma vibração começou tomar conta do seu ser. Tinha a impressão que entrara em simbiose com aquela árvore. Sim, se por um lado tinha a sensação de ter fecundado folhas novas por outro havia recebido a seiva da vida dela. E talvez, ou principalmente, por isto não viu o dia passar.

Deixou seu local de trabalho sorrindo. Há quanto tempo não sorria? Havia perdido na menória esta resposta. Sua vontade era chegar o mais rápido possível em casa e fazer uma nova caminhada. Só até aquela árvore, onde a contemplaria mais um pouco em busca do que havia perdido: a felicidade. Sim, aquela árvore estranhamente lhe dava uma sensação de felicidade que há muito não experimentara.

Porém o destino começou a conspirar contra ele. No caminho para sua casa uma chuva torrencial caiu. E, por mais que estivesse em êxtase com aquela árvore, jamais sairia na chuva para buscar mais energia para a sua vida. Na realidade não tinha a exata noção de tudo isso, mas sabia que uma magia envolvia aquela árvore. E esta palavra foi decisiva para ele começar a entender todo o processo que estava deflagrado a seu favor: magia.

Como a chuva teimava em não passar, Pierre se ouviu obrigado a ficar trancado dentro de casa. Em outras ocasiões, ficaria feliz com aquela chuva pois poderia curtir sua solidão em paz e teria a certeza que não receberia visitas incovenientes. E pra ele, todo o tipo de visita era inconveniente. No entanto, a magia daquela árvore tinha determinado a gênese de um novo homem. Não havia se dado conta disto mas ele já não era mais o mesmo.

Trancado naquela casa, sem opção do que fazer, aumentou o volume da televisão e foi acessar a internet. Imediatamente digitou a palavra magia. Era agnóstico por natureza, mas a palavra magia estava na sua cabeça. E ali começou a navegar pelos links e palavras que conduziam á magia.

Leu sobre o segredo do pentagrama, as forças da natureza, gnomos, e até sobre bruxaria. Por menos que gostasse admitir aquilo começou a exercer sobre ele um fascínio tão grande que foi como se todas as respostas que vinha fazendo a si mesmo durante o período de solidão absoluta, encontrassem eco na sua alma. E investigou o mais que pôde até que foi vencido pelo sono. Para não cair dormindo em cima do teclado, levantou-se e caiu na cama já dormindo.

Sonhou a noite inteira com elementos ligados á magia, mais dois em especial marcaram não só seu sonho como seriam determinantes para todo o resto da sua vida: uma bruxinha verde e uma borboleta roxa. Nunca havia visto nada igual em sua vida. Também pudera, ele nunca dera a menor importância para nada que se referisse aos poderes que a Mãe Natureza tem sobre nós e sobre nossos destinos que jamais ele poderia entender os significados implícitos da magia. A partir deste sonho a história da vida de Pierre teria uma guinada de 180 graus.




































































































28 de maio


Aqueles quarenta e poucos dias foram reveladores e ao mesmo tempo entediantes. Reveladores porque a cada dia um novo sonho, uma nova mensagem proveniente da magia vinha a até ele. Entediantes, porque como não tinha absorvido – ainda – a essência e o que a magia cobra a quem se dispõe a segui-la. Até de caminhar tinha
parado. Mas os sonhos eram recorrentes. Principalmente com a velha árvore com quem travava uma relação transcendental e com a bruxinha verde. E, vencido pelo sonho, numa rara noite quente – estava cada vez mais próximo o inverno – resolveu retomar sua caminhada.

Pegou seu MP-4 e saiu pra caminhar. Na realidade a caminhada seria só até aquela árvore. Seria o reencontro de dois grandes amigos, quase amantes, que havia divido – simbolicamente – a essência dos seus íntimos. Chegou, sentou-se a um banco próximo e começou a olhar a árvore. A princípio, olhou-a com certo desdém, mas logo a magia se imporia diante daqueles dois seres.

De repente, começou a tocar “Patience” do Guns n’ Roses e os acordes daquela melodia fizeram com que olhasse para aquela árvore com o mesmo carinho e afeto de antigamente. Pensou em dar um novo abraço cheio de vida nela para ver a simbiose ocorria de novo, mas teve sua atenção desviada por um barulho. Parecia uma cigarra. Como já estava integrado novamente á natureza, procurou a tal cigarra. Não a encontrou. Olhou para cima da árvore e pela primeira vez viu a bruxinha verde. Ela parecia triste, os sons que enviava não eram felizes. Nos seus sonhos, aquela mesma bruxinha parecia ter o som mais feliz de todas as bruxas boas que habitam o universo.

Aquilo o encabulou muito, mas resolveu atribuir a culpa daquela visão ás duas ou três doses de uísque que tinha tomado antes de sair ao encontro da árvore que ele havia abandonado por um bom tempo. No entanto, a bruxinha verde não saía da sua visão. Decidiu ir para casa, tomar um bom banho quente e deitar ou assistir a um filme na televisão.

Nunca foi um homem de atitudes previsíveis, por isto a volta para a casa em nada assustou quem o conhecia. Apesar de andar cabisbaixo, aparentando um ar de tristeza, no fundo estava feliz por ter reencontrado aquela árvore. Era como se reencontrasse um amor antigo. No entanto, a imagem da bruxinha triste fazia com que sua alma contraísse num misto de dúvida e dor. Estaria ele, decididamente, paranoico? Será que sua solidão espontânea havia chegado a um grau tão forte que ele já estava delirando e vendo coisas? No fundo, sabia que a resposta para todas estas perguntas eram negativas e que a resposta estaria na magia. Mas afinal, que magia poderia haver numa bruxinha verde em cima de uma árvore?

Estas perguntas todas perturbavam sua cabeça. Fato é que ele não era mais o mesmo desde o abraço profundo que havia dado naquela árvore e do conhecimento (ainda quase insignificante) que havia tido da magia. Mas decididamente não entendia os sinais e muito menos os seus significados.

Chegou em casa, tomou um banho quente. A imagem da bruxinha não saía da sua mente. Saiu do banho e olhou para a garrafa de uísque. Decidiu que não ia beber mais naquela noite. Enquanto trocava-se o telefone tocou. Estranhou. Ninguém ligava pra ele em casa. Recusava-se a dar o telefone residencial porque queria ficar sozinho. O celular só andava no modo “mudo”. Só o telefone do escritório era atendido com certa boa vontade.

Totalmente vencido pela curiosidade atendeu ao telefone. Seu coração quase veio á boca. Era Isadora. Isadora apareceu na sua vida do nada, num encontro casual num show de jazz em um bar que ambos frequentavam. Tinha o sorriso largo que combinava com aqueles olhos castanhos enormes e expressivos. Ele nunca fora um paradigma de beleza, mas àquela época ainda tinha assunto e isto fazia dele, de certa forma, uma pessoa interessante. De certa forma, Isadora era uma das causas do seu silêncio.

Ela entrou na sua vida, marcou presença. Com ela por perto ele cresceu profissional e pessoalmente. Amadureceu, por assim dizer. E da mesma forma que entrara, saíra sem dar o menor sinal e sem deixar a menor pista de onde pudesse reencontrá-la. Ali começou a sua íntima relação com a bebida. Com o tempo, o efeito Isadora foi aquietando-se no seu peito. Verdade que proporcionalmente Isadora aquietava em seu peito mais ele bebia. Então, pode-se dizer que ele literalmente afogava Isadora no seu peito.

Desde esta época, uns três outonos antes, nunca mais teve sequer notícia dela. E do nada ela surgira. A primeira coisa que veio a sua mente evidentemente foi a palavra magia. Mas não, podia apenas ser uma coincidência. E deixando um pouco pra lá a obsessão que invadia seu ser – a magia – ouviu o que Isadora tinha a lhe dizer.

Para sua surpresa ela queria vê-lo no dia seguinte. Ele gelou. Não podia ser coisa boa. Ninguém some do nada e liga pra dar uma excelente notícia. Por precaução já perguntou o que havia acontecido de errado. Ela chegou a jurar que nada havia de errado, que apenas tinha dado saudades dos bons e velhos tempos e que queria revê-lo. Ele riu pra si mesmo, afinal só ele tinha tido bons e velhos tempos para recordar. Se ela tivesse tido ao menos metade dos bons momentos que ele teve, ela teria sumido?

As perguntas ecoavam em sua cabeça com a força de milhares de megatons. Não entendia o porquê daquele telefonema. Claro, depois de tanta amargura no peito estava mais do que convencido de que na vida não existem muitos porquês a serem respondidos. E foi com esta convicção que ouviu a conversa até o final. Mais que isto, interagiu com Isadora como nos velhos tempos e – por uma mísera fração de segundos – chegou a pensar que reatariam o que, de fato, nunca havia sido desfeito.

Ao final do telefonema ficou marcado um jantar na casa de Pierre para o dia seguinte. Este era um dos seus dotes. Era um excelente cozinheiro. Isadora disse que o vinho ela levaria e que estava com vontade de comer um peixe grelhado que ele fazia como ninguém. E assim ficou combinado.

Naquela noite dormiu um sono leve como há muito tempo não tinha. Levantou mais cedo que o normal, afinal tinha que dar um jeito na casa. Percebeu que a bagunça era tanta que não teria tempo de arrumar aquilo. Ligou para Erundina, sua diarista de épocas atrás e que sempre estava disposta a ajudá-lo como boa ouvinte e como bom copo que era (adorava uma cachaça pura de quinta categoria).

Como era de se esperar, a velha diarista arrumou um tempo para por a casa de Pierre em ordem. Ela sabia como ninguém como ele gostava da arrumação da sua casa. Ele sabia como ninguém de como ela era mais rápida e eficiente se aliasse a cachaça ao serviço. Assim, antes de qualquer outra coisa foi ao mercado, comprou uns pães e um leite e uma garrafa de cachaça. Fez seu ritual matutino e foi caminhar. Mais do que nunca a caminhada se fazia necessária naquele dia. Se fosse mesmo magia, com certeza aquela árvore havia de dar algum sinal. Ou quem sabe aquela bruxinha verde finalmente dissesse alguma coisa e não aparecesse só chorando.

E assim fez sua caminhada até a árvore. A manhã estava abafada. Com certeza seria um dia de mormaço e de chuva constante. Melhor ainda. Um jantar a dois com chuva caindo não pode ser mais romântico, não é verdade?

No entanto ao sentar no banco ao lado da árvore um frio tomou conta do seu corpo e, principalmente, da sua alma. Seria aquele o tal arrepio da morte, quando estamos prestes a encontrá-la? Provavelmente não. Chegou rapidamente á conclusão que era um tipo de delírio provocado pela extrema excitação que estava vivendo naquele dia. Sem saber por que, olhou para cima da árvore. Viu o que temia ver: a pequena bruxinha verde chorava. Chorava um choro mais incontido que da vez anterior. Chorava um pranto indescritível.

Novamente o arrepio tomou conta do seu corpo. Que diabos seria aquilo? Tentou esquecer do que vira. Era melhor acostumar com a idéia que estava ficando paranoico. Nunca foi dado a acreditar em magia, por que seria agora que acreditaria numa bobagem desta? E só paranoico para dar importância a uma bruxinha verde chorando no galho de uma árvore. Não, não era magia. Ele estava enlouquecendo mesmo.

Com a idéia fixa de sua loucura lenta e gradativa foi trabalhar. Aos poucos esqueceu completamente o episódio da manhã, mas não conseguia esquecer da bruxinha chorando. Riu de si mesmo. Como contaria a alguém isto? Seria internado no mesmo instante. No entanto aquilo decididamente o perseguira. Tentou esquecer de tudo e concentrar-se apenas no jantar daquela noite.

O dia, como de costume passou lento. A lembrança daquela manhã é que teimava em ficar na sua cabeça. Ligou para sua casa e percebeu, pelo estado etílico de Erundina que o serviço já estava feito há muito tempo. Até de comprar o peixe e os ingredientes para o jantar ela havia lembrado. Com certeza devia ter tomado mais algumas na rua. Mas era boa mulher. E competente no seu serviço. Só tinha esse problema com o álcool. Mas ninguém é perfeito, não é verdade?

Foi para sua casa com pressa. Dispensou o “happy-hour” como os amigos. Queria estar cem por cento sóbrio quando Isadora entrasse pela sua porta. Apesar de não querer pensar no assunto, insistia na possibilidade de que a magia poderia acontecer durante e depois daquele jantar. Chegando em casa, viu o estado de embriaguez da boa e velha Erundina e decidiu levá-la pra casa. Ao descer do carro ouvir da ajudante que era pra se cuidar no caminho de volta, porque um temporal viria logo.

Discretamente ele riu. Aquela velha agora era dada a meteorologia? Além do mais, havia uma ou outra nuvem negra no céu. Daí a virar temporal era muita catástrofe. Voltou pra casa, e, no caminho percebeu que a quantidade de nuvens negras aumentavam. De novo a palavra magia voltou a sua mente. Riu, novamente. Mera coincidência.

Entrou apressadamente em casa, pois tinha um jantar mais do que especial para preparar. E assim foi feito. Com o carinho de quem ama a comida foi preparada para que aquele fosse um verdadeiro banquete dos deuses. Olhou para o relógio. 20h15min faltavam quarenta e cinco minutos para Isadora chegar. Percebeu que uma forte ventania também começou. Lembrou das palavras da velha e teve a tentação de tomar uma dose de uísque, ou mesmo uma cerveja para relaxar. Conteve-se. Havia prometido a si mesmo que ficaria sóbrio até o jantar. E iria cumprir. Nem sempre a vida nos devolve quem amamos de volta. E com Isadora era assim.

A hora foi passando. Deu 21 horas e nada de Isadora. Alguma coisa estranha estava acontecendo. Alguma coisa? Nos últimos dias tudo de estranho estava acontecendo com ele. Isadora nunca se atrasava. Andou de um lado pro outro. Pois outro cd e nada de Isadora chegar. Não resistiu. Quebrou a promessa. Abriu um uísque 21 anos que guardara para ocasiões especiais e começou a beber. O cd acabara a dose também e nada de Isadora chegar.

Repentinamente, Pierre deu um berro que a vizinhança toda ouviu. Era um grito de quem dá um basta em toda situação contrária que tinha vivido até então. Isadora havia brincado com sua cara mais uma vez. Sumido do nada. Lembrou-se da bruxinha chorando. Jogou uma praga na bruxinha e na árvore. Sentia, sem perceber, o preço que a magia cobra de quem se envolve com ela.

Meia noite. Abriu o uísque mais barato que tinha. Isadora não merecia um porre de um uísque tão caro quanto aquele. Bebeu uma dose e mudou novamente de idéia. Isadora não merecia nem um porre de uísque. Tinha que ser de cerveja mesmo. E da mais barata. Ligou e pediu. Uma e meia da manhã chegaram com doze garrafas de cerveja. Seria a cota daquela noite. Trabalho? Amanhã era outro dia e certamente pensaria no assunto.

Duas da manhã. Mal acabara de abrir sua segunda garrafa de cerveja e o telefone tocou. Pensou em não atender porque deveria ser Isadora contando uma mentira qualquer. Não atendeu a primeira vez. O telefone insistiu. Resolveu atender porque desta vez pelo menos Isadora iria desaparecer dando notícias. Atendeu o telefone com este pensamento e quebrou a cara. Isadora havia sofrido um sério acidente de carro e estava hospitalizada. Anotou o nome do hospital, e, mesmo embriagado seguiu como um louco em direção àquela casa de saúde.

Estava com remorso. Havia julgado mal aquela que durante uma época havia dado a ele a felicidade plena. Aquela que seria uma pessoa especial, uma alma dividida a dois. Como poderia ter sido tão cruel assim? Só por que ela havia sumido sem dar notícias, isto significava, necessariamente, que o amor entre ambos havia acabado? Não decididamente um amor tão profundo assim não acaba assim. Mesmo que tivesse optado pela solidão, quem podia garantir que esta não era também uma prova de amor que ele daria a ela?

Esta mistura de sentimentos tomou conta de Pierre, até ele chegar ao hospital. Ao chegar, foi ao encontro do médico saber do estado dela. O médico disse que havia tido múltiplas fraturas, mas sobreviveria. Em compensação nada podia ter sido feito para salvar o bebê.

Mais uma vez o mundo desabara sobre a cabeça dele. Além de tudo ela estava grávida? Por que não avisara isto antes? Por que não tinha aberto o jogo por telefone? Por que disse que a conversa seria interessante se ela estava esperando o filho de outro homem? Sentou na primeira cadeira que encontrou e desabou num choro profundo, incontido, como talvez nunca tivesse chorado assim antes. Imediatamente a imagem da bruxinha chorando daquela forma povoou sua mente e pela primeira vez ele começou a render-se á magia.



25 de julho


Isadora passou três semanas no hospital. Neste tempo todo Pierre ficou ao seu lado. Percebeu que mesmo tendo família, a relação dela com a mãe, a irmã e o padrasto não era das melhores. Viu que ela ficava mais feliz cada vez que ele estava por perto. Nestas semanas ele estabeleceu uma relação próxima com a magia. Pesquisou tudo o que pode a respeito, ouviu pessoas do meio, enfim praticamente entrou de corpo e alma no mundo da magia.

Mais que isto, constantemente sonhava com a bruxinha verde e esta aparecia quase que acalentando seu sonho. Nunca mais, nestes dias em que Isadora esteve internada, a bruxinha apareceu chorando. Ao contrário, de certa feita apareceu rindo muito, radiante de felicidade. Obviamente ele não entendeu nada. Mas desistira de tentar entender. Sabia que aquela bruxinha era o sinal de que a magia iria se manifestar na sua vida.

Pouco antes de Isadora deixar o hospital, o médico chamou Pierre e os familiares dela para dizer que ela precisava de repouso absoluto nos dias que se seguiriam á recuperação dela. Ele, sem vacilar, propôs que ela fosse para sua casa. Depois de certo receio da família, acabaram cedendo e concordando com a proposta dele. E assim foi feito.

Isadora achou estranho o fato de Pierre ter ficado ao seu lado o tempo todo e nunca ter tocado na gravidez que fora interrompida no acidente. Sabia que ele tinha descoberto a gravidez e que, de alguma forma, isso o teria ferido profundamente. Por que, afinal permanecera em silêncio absoluto. Isso gerava um incômodo terrível nela. Sabia que iria pra casa dele e com certeza ele pegaria pesado com ela quando ela estivesse mais recuperada. Mesmo sendo grata a tudo que ele tinha feito, se ele ousasse a tocar no assunto com alguma agressividade ela o deixaria de novo e, dessa vez, ela não o veria nunca mais.

Por seu lado, Pierre estava concentrado em fazer o melhor para Isadora. Sabia que ela era meio rebelde, mas a amava de uma forma como nunca havia amado antes e queria o melhor pra ela. Iria fazer de tudo pra que ela ficasse dessa vez ao seu lado. Tinha ficado nestas três semanas uns quinze dias absolutamente sóbrios, o que, naquele caso acabava sendo um recorde para ele.

Enfim, chegou o dia dela ir para a casa. Estava animada. Ele mais ainda. Levou- a no seu carro e ao chegar na casa encontrou Erundina sóbria, de uniforme e mais uma enfermeira pra cuidar dela enquanto ele trabalhava. Mais que isto havia uma decoração de flores a saudando e desejando que ela melhorasse o mais rápido possível. Lágrimas correram dos olhos de Isadora. Pierre segurou a sua tamanha era a felicidade que sentia. Naquele momento ele teve uma sensação estranha. Sentiu que a bruxinha verde acariciava seu rosto, como se tivesse agradecendo a ele pelo amor dedicado a Isadora este tempo todo.

Virou pra trás e chegou á conclusão que a tal bruxinha verde não passava de uma brisa que tinha passado por ele. Alguma corrente de vento. De novo recusara a magia. Ou será que entendia que a magia estava diante dele, em forma de gente, como ela nunca havia imaginado desde o dia em que optou ser uma pessoa extremamente solitária e, por conseqüência, triste e melancólica?

Os dias se seguiram calma e harmonicamente. Isadora melhorava a olhos vistos. Pierre se dedicava á amada como ela nunca tinha percebido antes. Mais que isto, o silêncio a respeito da criança que ela havia perdido continuava. E isto a deixava confusa, angustiada. Ele continuava bebendo pouco e cada vez mais socialmente, mesmo.

No entanto, o conflito estava prestes a se estabelecer. A conversa sobre a gravidez teria que acabar acontecendo e isto poderia provocar um estresse que tinha sido evitado até então.

Assim que Isadora ficou totalmente liberada dos medicamentos e já podia, de acordo com os médicos, retomar sua vida normalmente, Pierre fez o que estava devendo a ela. Preparou o peixe grelhado que ela havia pedido no dia em que ela sofreu o acidente. O que era para ser uma demonstração total de romantismo pareceu provocação para Isadora. Por que ele havia preparado o mesmo cardápio que no dia que perdera a criança? Ela tinha certeza, isto era pura provocação dele mesmo.

O jantar, que era pra ser um momento de romantismo entre os dois, acabou sendo um momento de tensão. Ele por não saber se podia dizer o que realmente estava sentindo, ela por ficar esperando que ele tocasse no assunto. Isto a feria profundamente. Precisava ele preparar tudo aquilo para tocar num assunto tão delicado como aquele para ela?

O silêncio acabou imperando por quase todo o jantar. Até que Isadora, não suportando o que pra ela era uma chantagem absurda resolveu abrir o jogo com Pierre. Contou que a gravidez acontecera depois que ela passou vinte e um dias com um amigo em comum e que nunca se prevenira. Que ela o amava, mas estava cansada do tipo de vida dele. Queria vida, queria crescer, queria ter alguém que a respeitasse e que ao menos dividisse as idéias junto com elas. Ele só pensava nos amigos e na carreira, aliás, bem sucedida. Ele disse que nada disso importava e que pra ele só ela era importante. Importante era ela estar com ele, naquele momento. Disse que o que sentia era eterno e isto nada e ninguém nunca mudariam. Ainda que tivesse com outro, seu amor permaneceria eterno. Disse mais, disse que mesmo o golpe tendo sido grande, jamais ele deixaria ou deixou de amá-la, pensá-la, querê-la...

Ia continuar falando mas Isadora adiantou-se e um beijo profundo iluminou aquela noite que havia começado carregada de tensão. Juras de amor foram repetidas, enquanto os amantes já se desfaziam das roupas e, ali no chão mesmo, entregaram-se um ao outro e viajaram mutuamente ao reino da luxúria e do amor pleno. Carne e alma saciados, os dois caíram praticamente desfalecidos e antes que ele dormisse completamente ainda conseguiu ver a bruxinha verde feliz da vida. Riu. E nem deu pra balbuciar nada. Caiu num sono profundo.

O dia amanheceu com os dois amantes nu, na sala. Pierre olhou para Isadora e só então teve a certeza que a noite anterior não passara de apenas um sonho bom. Era verdade e isto nada e ninguém nunca tirariam dele de novo. Depois de muito tempo levantou sorrindo e foi preparar um desjejum para ambos. Tinha que ser relativamente rápido porque Erundina logo estaria em casa para trabalhar.

Pegou Isadora no colo. Ela ameaçou acordar e ele disse pra ela dormir, pra ela descansar porque um novo dia estava nascendo e depois os dois se falariam mais. Levou- a até a cama e deixou que dormisse profundamente. Quando estava descendo pra arrumar as coisas deparou com a boa e velha empregada na porta da sua casa. Erundina deu uma risadinha de canto de boca, sarcástica mesmo como se dissesse que havia entendido tudo. Ele sorriu de volta. Pediu a ela que arrumasse tudo. Ia caminhar um pouco.

Apesar de estar vivendo em estado “de graça” sentia vontade de fazer aquela caminhada. Na realidade a tal caminhada tinha se convertido em uma micro caminhada, pois ele só ia até a árvore. Sentava ao seu lado e a contemplava como se tivesse esperando que lhe desse ordens para ele ser feliz. Inconscientimente havia incorporado a magia na sua mente e no seu coração.

Chegando ao seu “templo” percebeu uma coisa rara para aquelas manhãs não muito quentes de outono. Aliás, as tardes poderiam ser quentes, mas as manhãs decididamente eram frias.

Logo notou que haviam mais seis folhas verdes na árvore. Riu. Pensou que a simbiose estivesse se completando, porque, de sua parte estava cada vez mais cheio de vida também. Isadora tinha dado uma motivação que faltava a ele sempre. Percebia que estava mudando. E era exatamente aí que estava o perigo. Toda vez que mudava e se entregava a uma relação quebrava a cara. E cada vez que isto acontecia sua depressão, sua vontade de viver, se reduzia de maneira drástica.

Parou de pensar naquilo e resolveu se concentrar na árvore. Não demorou muito e avistou a bruxinha verde. Desta vez não conteve o riso largado, solto, a gargalhada mesmo. A bruxinha verde pulava de alegria no tronco da árvore. Parecia estar mais realizada que ele. Ficou um tempo prestando atenção naquele ser do mundo da magia. Depois se deu conta que as horas haviam passado impiedosamente. Eram 10h47min. Tudo bem que era um domingo, mas a esta altura Isadora já deveria ter acordado e não seria nada agradável que ela despertasse e notasse sua ausência. Isto poderia denotar um relaxo de sua parte e, decididamente, não era isto que queria.

Chegou em casa e Isadora realmente tinha levantado. Estava no banho. Pensou que ela pudesse ter ficado magoada ou algo parecido com sua ausência ao despertar. Tratou de preparar um desjejum de acordo, embora tivessem combinado de almoçar num restaurante que trazia belas e doces recordações a ambos. Esmerou-se no café da manhã. Depois de um tempo, surgiu Isadora de roupão, largo sorriso no rosto, uma beleza que irradiava harmonia não nos quatro cantos da casa, mas em toda redondeza dela.

Sem muita cerimônia deu um longo e molhado beijo em Pierre. Ele se sentiu leve como uma pluma por ter chegado a tempo e preparado um belo café da manhã. Ela por ter tirado um peso imenso de suas costas. Não conseguia explicar o que sentia, mas naquele momento o que era mais importante pra ela, era a presença de Pierre ao seu lado. Ainda que seu coração batesse forte por Paulo, Pierre demonstrara amá-la incondicionalmente. E queria retribuir este amor que não só demosntrava como dava a ela.

Mal tomaram o café da manhã e, percebendo o pretexto de Isadora estar apenas de roupão, amaram-se com mais intensidade e entrega do que na noite anterior. Amaram-se sem limites e sem reservas. E durante o ato sublime da comunhão dos corpos, que é a aliança das almas, Pierre ainda teve tempo de ver a bruxinha verde com aquele largo sorriso no rosto. Amou Isadora com mais voracidade ainda. Sabia que aquele ato era “abençoado” pelo mundo da magia.

Foi tanto amor, tanta entrega tanto prazer que acabaram esquecendo-se do almoço que havia combinados. Passaram aquele domingo entre o amor e o descanso. Descanso do corpo e da alma. Pois almas aflitas quando aparam arestas e reconstroem o caminho, são mais intensas que as almas comuns.

Só quando anoiteceu é que tiveram fome e aí sim foram para outro restaurante que muito tinha a ver com a sua história. Jantaram entreolhando-se num olhar de paixão, cumplicidade, harmonia... Se pudessem, fariam amor ali mesmo. Mas Pierre era contido em relação a isto. Gostava de tudo detalhado e até as aventuras tinham de ser programadas. Jamais tomaria a iniciativa de um gesto mais ousado com Isadora naquele lugar. Queria muito, mas era preso demais ás convenções. A magia o havia libertado um pouco destas convenções, mas não o suficiente para grandes ousadias.

E assim os dias se passaram... Tênues, suaves, plenos. No dia 25 de Julho, Pierre demorou mais que o convencional em seu escritório. Acabou comendo alguma bobagem por lá como se fosse seu almoço. Isadora, sem falar nada com ele, sentia cólicas, náuseas...

Pierre envolvido em uma causa volumosa não se apercebeu do que acontecia com a amada. Isadora já tinha ido ao médico e feito exames. Dia 25 era dia de consulta e saberia o que tinha apesar de, no fundo, desconfiar do que estava acontecendo com ela. Quando ela soube do resultado dos exames, foi radiante pra casa. Pierre chegou exausto, mas ao Isadora mostrar-lhe dois sapatinhos de recém- nascido um largo sorriso se fez nos dois e o beijo foi o mais intenso possível. Ao contrário do que se esperava não fizeram amor. Curtiram-se apaixonadamente a noite toda, e quando o dia estava dando os primeiros sinais de vida foram ver juntos, abraçados, agarrados o dia nascer para eles dois. Era uma metáfora do que estaria por vir nos próximos meses.



21 de setembro


Pierre sempre se achou preparado para tudo. Ainda mais quando o desejo de abandonar a vida se apossou dele achou que tivesse o controle de todas as situações. Mas a pessoa que conseguiu controlar todas as situações na vida morreu de tédio por não ter mais nenhuma emoção pra viver. Ainda assim, feliz, e agora futuro papai não abandonara por nada sua rotina.

A árvore cada vez mais verde. Pudera, era quase primavera. No entanto isto dito para alguém que vive intensamente a magia passa ser um detalhe tão insignificante, tão mínimo, que estações do ano passam a serem apenas épocas para vestir roupas mais ou menos quentes. Via as folhas brotarem com o vigor como o que ele sentia naqueles dias. A simbiose agora era completa. Ele estava em seu pleno vigor assim como aquela árvore. A bruxinha verde o sorria abertamente para ele. Tudo se encaminhava para uma guinada radical em sua vida.

Isadora, por seu lado, vivia um misto de alegria e angústia. Pierre não era mais o mesmo homem doce, meigo, carinhoso, amigo, cúmplice que ela conhecera anos antes. Não que tivesse quebrado a magia entre os dois, mas ela percebia que sua atitude intempestiva tinha mexido muito com o emocional dele. Percebia que havia ainda segredos por parte dela a serem desvendados e que descobrir estes segredos seria ferir fatalmente o seu amado. O ventre de Isadora entrava em rebuliço cada vez que pensava neste assunto. Seria a tal da magia se manifestando nela. Não, com certeza não. Era apenas um enjôo diante de tantos outros que ela sentia por aqueles dias. Decididamente, magia era uma coisa exclusiva para que Pierre vivesse.

O que Isadora não percebia é que almas que se cruzam no espaço e ousam se unir num beijo ou num encontrar ardente de corpos vão se eternizar. Nem a morte os separará. Apenas os unirá. No fundo, nem Pierre tinha exata noção disto, mas estava se sentindo tão plenamente realizado por aquela realidade que vivia ao lado de Isadora que queria pensar apenas no mundo novo que viria pela frente.

O comportamento dele ia se modificando com o passar dos dias. Certa feita chegou do escritório e trouxe um projeto de um parque com uma área reservada para a casinha do cachorro. Isadora riu um riso contrariado. Primeiro que era muito cedo pra pensar em parque para a criança brincar. Segundo que a rinite dela jamais ia permitir dividir a casa com um cachorro. Pierre alegou que toda a criança tinha que ter um animal de estimação. Isto além de acrescentar no lúdico faria com que ela tivesse mais responsabilidade.

A geminiana Isadora tremeu toda ao ouvir aquilo. Personalidades difusas são assim mesmo. Extremamente exageradas e exigentes consigo mesmas. Como administrar uma casa, um bebê e um cachorro com aquela rinite infernal? Passou tudo pela cabeça dela, mas acabou se convencendo que, cabia a ela, como mulher, usar todas suas armas para fazer com que Pierre mudasse de idéia em relação a tudo que tinha programado.

O mais complicado era que Pierre parecia captar todos os pensamentos e sentimentos de Isadora. De uma hora pra outra, ele ficou visivelmente contrariado, mas fazia de tudo pra não demonstrar. Seu tom de voz era “relativamente” animado em relação á família recém formada. No entanto, Isadora percebia que ele estava contrariado com a frieza que ela havia recebido o projeto do parque e do animal para crescer junto com seu filho. O que ela não imaginava é que até aí a magia estava mais do que presente na sua vida.

Pierre começava, depois de tanto tempo, ter sonhos estranhos. A bruxinha verde, desta vez, não ria mais. Também não chorava. Mas demonstrava uma tristeza profunda. Parece que queria fazer algo que mudasse a realidade, mas não conseguia. Era limitada demais para lutar contra as forças da natureza. Ele nunca havia acreditado em destino, mas percebia que a natureza é que move o ser humano. Pela primeira vez começava a entender certos preceitos filosóficos. Mas ainda assim, mesmo sendo um ferrenho defensor da lei e dos ordenamentos jurídicos (incluindo aí a mão pesada da justiça) preferia, ainda, ser mais amado do que temido, contrariando Maquiavel.

Diz a máxima do mundo da magia que o universo conspira a favor das pessoas de bem. Pierre decididamente não entendia esta máxima. Quanto mais se esforçava para fazer as coisas certas, mas parecia que o universo conspirava contra ele. Pior. Se a natureza o afagava com uma mão, com a outra lhe dava uma profunda bofetada na cara. Isto o fazia se irritar com a magia. Quando ouvia “está escrito” queria acabar com quem dissesse isto em qualquer idioma que fosse.

Mas desta vez tudo parecia, finalmente, estar caminhando em seu favor. Isto não passava de contrariedades de uma mulher grávida. Refletiu profundamente e chegou á conclusão que estava mimando demais Isadora. Mas o que ele poderia fazer? A última coisa que poderia passar pela sua cabeça era perder novamente Isadora. E ainda mais agora. Carregando um filho seu no seu ventre. Decididamente isto não poderia e nem haveria de acontecer.

O tempo passava e a relação antes harmoniosa e plena encontrava agora os primeiros obstáculos. Não que estivessem cada um em um pólo oposto ao outro. Não, nada disso. Porém as expectativas que cada um criara em torno daquela criança que estava sendo gerada eram diferentes. Pierre via como o tudo da sua vida, como a sagração da magia e do amor nele e por eles. Isadora via como uma forma de redenção, de devolver o amor incondicional que recebera e que continuava recebendo dele.

Apesar de pontos de vistas distintos, ambos viam cumplicidade, amor e desejo um no outro. Pierre cada vez mais envolvido com o mundo da magia passava a acreditar que todas as forças da natureza haviam se unido a seu favor. Este foi um de seus erros imperdoáveis. Quanto mais se envolve com a magia, mais se deve dar atenção aos sinais que ela nos dá. Pierre via que a bruxinha verde tinha uma expressão de angústia e nem assim valorizava este sinal. Isadora, sem se dar conta, ia afastando lentamente daquele que era seu amor.

Ele estava cometendo um erro primário nisto tudo. Por mais que tivesse envolvido com a magia e com o momento mágico que vivia pela expectativa do filho, aos poucos foi renegando a atenção que Isadora mais que pedia, clamava dele. Não entendia que o amor deve ser regado todo o dia. Quem não dá atenção ao ser amado constantemente prepara o nó para sua própria forca. Isto não há magia nem conspiração positiva que dê jeito. E quantos deixam de lado o ser amado por compromissos profissionais ou apenas por estar com os amigos...

Pierre estava cometendo este erro. Isadora sempre queria dar uma nova chance a ele, mas sempre o percebia distante, longe, acomodado á situação. Lembrou-se do seu ex. Foi exatamente agindo assim que o relacionamento tornou-se insuportável, frio, distante. E as conseqüências deste distanciamento de Pierre começaram a afetar Isadora fisicamente. Começou a sentir cólicas cada vez mais fortes. Dores abdominais constantes. E até febre chegou a ter.

Quando a sensação de abandono de Isadora converteu-se em febre, Pierre voltou a dispensar-lhe a atenção de antes. Esqueceu do jardim, do animal e focou sua atenção na sua amada. Lembrou-se que antes de qualquer coisa era ela quem gerava a vida que ambos haviam feito naquela noite quente de amor e fria de inverno. Lembrou-se que toda mulher é sensível por natureza. Mas quando está grávida ou de TPM a sensibilidade mais que aflora nelas. E aí elas são capazes de fazer verdadeiras loucuras. Depois de muito tempo, ele voltara a dar atenção aos sinais que o mundo da magia enviava a ele.

Durante um tempo as coisas voltaram ao normal na vida de Isadora e Pierre. Porém, o trabalho o estava consumindo de uma forma que nem ele estava se apercebendo. Isto deixava Isadora insegura. Lembrava constantemente do seu ex tinha obsessão pelo trabalho. Mal almoçava em casa. Sempre tinha desculpa para estar com os amigos. Não se importava muito com a gravidez dela, apesar de dizer que o filho era a coisa mais importante da vida dele. E agora Pierre tinha um comportamento muito parecido.

Conforme os dias iam passando, Pierre foi deixando de visitar sua boa e velha amiga árvore. A bruxinha verde, cada vez que aparecia, surgia com um ar mais triste, mais deprimido, com a fisionomia de quem perdera alguma coisa importante e não achava por nada. Era outro sinal que o mundo da magia mandava e que ele não se dava conta. Mal sabia ele que a natureza faz o destino nos pregar peças quando desconsideramos seus sinais.

Quando a noite caía à harmonia voltava aquela casa. Os dois ficavam sempre abraçados fosse assistindo a um filme, a um noticiário ou até mesmo uma novela. Sim, Pierre que sempre abominara novela agora virara um espectador delas. Não se pode dizer que era assíduo, mas que conhecia bem a trama dos folhetins, isto com certeza conhecia. Enfim, quando caía à noite pareciam realmente um casal, coisa que não eram quando o dia cobrava deles as suas obrigações.

Na manhã seguinte Pierre acordou com o coração apertado. Tinha medo quando isto acontecia porque sempre acabava acontecendo alguma coisa de ruim. Por isto, levantou cedo e foi ver a árvore. Ao chegar diante dela percebeu que estava mais linda ainda. Toda carregada de folhas verdes. A vida abundava ali. Procurou a bruxinha verde e não a viu. Riu. A árvore estava tão carregada de folhas que a bruxinha nem deveria ser vista mesmo. Era muito verde a sua volta. Não resistiu. Abraçou a árvore com a mesma intensidade daquela primeira vez . Desta fez não fizeram amor. A árvore não correspondeu ao abraço. Sentiu-se frustrado. Quando saía de volta pra casa algumas folhas caíram sobre ele como se fosse um aviso que ele estava perdoado, mas que devia prestar mais atenção nos avisos que a natureza lhe dava.

Enquanto ia para seu escritório viu a bruxinha verde aos prantos. Dessa vez se preocupou. Sabia que quando ela aparecia alguma coisa grave iria acontecer. A última vez que viu aquela bruxinha daquele jeito foi quando Isadora sofreu o acidente. Decididamente aquilo não era bom sinal. Chegou no escritório e imediatamente ligou para sua amada. Ela riu da sua história. Disse que estava tudo bem e que aquilo não passava de uma alucinação dele. Disse mais, disse que já estava na hora dele procurar uma ajuda especializada.

Sabia que algo iria acontecer. E não iria procurar ajuda nenhuma. Ele estava mais do que convencido no poder da magia e tinha provas que ela existia na sua vida. Depois se lembrou do abraço que dera naquela árvore e de como ela agira com ele. Algo muito errado estava a caminho. Mas o que era afinal? Isto começou a angustiar Pierre.

Nem trabalhou direito naquele dia. Não conseguia se concentrar no seu serviço. Ligava a cada hora para Isadora. Isso começou a irritá-la profundamente. Preocupação era uma coisa. Outra coisa era ficar perturbando ela o dia todo. Resolveu não atender mais o telefone.

Foi para o mercado, deixou o celular em casa. Não queria ser importunada mais pelo seu namorado. Ela estava profundamente irritada com Pierre. Na realidade Isadora não gostava de ser pressionada. Cada vez que sentia pressionada, tomava uma atitude impensada e, não raro, se arrependia amargamente depois do que fazia. E mais uma vez a natureza conspirou contra Isadora e Pierre.

Quando ela ia voltando pra casa sentiu uma dor intensa no seu ventre. Era uma dor insuportável, incontrolável. Mudou de rumo e foi direto para um hospital. No seu escritório, Pierre sentiu uma dor no peito. Era o indicativo que alguma coisa ruim estava acontecedo. Ligou para a mulher. Não atendeu. Entrou em pânico. Sabia que tinha alguma coisa acontecendo, mas não conseguia falar com Isadora. Para piorar tudo, viu novamente a bruxinha verde em prantos. Era tudo que ele precisava para ter certeza de que algo estava errado.

De repente, o telefone do escritório tocou. Era do hospital informando que Isadora havia sido internada com certa gravidade. Partiu imediatamente em direção da amada. Não conseguia imaginar a vida sem Isadora. Tudo caminhava para a felicidade plena, mas a natureza insistia em conspirar contra os dois. Ao chegar ao hospital, foi informado que ela estava sendo medicada e que logo o médico diria exatamente o que havia acontecido. Os poucos minutos que se seguiram pareceram uma eternidade.

Subitamente o médico surgiu no corredor. A fisionomia não era boa. Será que havia perdido para sempre sua amada? Não, não seria agora que perderia Isadora. Ela estava bem. O que não estava bem era o fruto do amor. Isadora havia tido um aborto espontâneo. Pierre sentou e chorou como há muito tempo não chorava antes. Era o fim de mais um sonho em sua vida.



13 de dezembro


Os meses que se seguiram foram uma verdadeira montanha russa de emoções. Pierre, por seu lado, se condenava por não ter estado com Isadora naquele momento. Ela sentia certo remorso por não ter confiado na intuição do amado. No entanto, quem olhasse para aqueles dois viria uma cumplicidade em seus olhos que chegava a ser emocionante. Eram capazes de se reconstruir mesmo diante de tantas adversidades que a vida lhes impunha.

Pena que o ser humano não é previsível como pode parecer aos nossos olhos. Quando temos certeza que tudo caminha bem com pessoas próximas a nós é aí que os conflitos estão estabelecidos entre eles. E o que é mais grave: normalmente preferem sofrer em silêncio a dividir as angústias com as pessoas que tem carinho, afeto, amor por elas. Com eles a coisa estava assim também. No entanto, cada um sofria sua dor em silêncio. Não eram capazes de dividir a agonia que cada alma trazia. E o motivo, para eles, era o mesmo: um não queria ferir o outro.

Pierre, mais uma vez, havia deixado a magia de lado. Nem a presença constante da bruxinha verde ao seu lado fazia com que ele prestasse atenção nos sinais que a natureza lhe enviava. Estava no final da primavera e no início de verão. Ele sequer havia estado mais uma vez com aquela árvore que tanta energia lhe transmitia. Mesmo vivendo ao lado de sua amada, tornara-se só novamente.

Evidentemente fazia de tudo para que Isadora não percebesse como ele estava se sentindo. Mas a plenitude da alma estava em descompasso com a realidade que agora vivia. Tinha uma estranha sensação de que, de certa forma, agora Isadora queria “escondê-lo”. Carregava consigo a impressão que ela não tinha mais prazer de apresentá-lo como seu namorado, seu homem, seu marido.

Ela, por sua vez, tinha a nítida impressão que ele a evitava. Que estava rejeitando-a pelo fato de ter perdido o filho que os dois desejavam tanto. Sentia-se culpada por aquilo e o que era pior: as atitudes de Pierre a deixavam cada vez pior. Estava se tornando insuportável suportar aquele clima, aquela relação daquela forma. Ou ambos mudavam radicalmente seu comportamento uma relação ao outro ou estava fadado ao fim de maneira abrupta, onde não sobraria uma mísera relação de amizade.

Pierre começou a perceber que suas atitudes estavam afastando Isadora dele. Como sempre, recorreu á magia para ver se entendia o que estava fazendo em relação a ela e como poderia ser cada vez melhor. Depois de um longo tempo voltou a sentar-se ao lado da árvore que lhe trazia vida, afeto, e que revigorava completamente suas forças. Percebeu, só aí, a beleza da imponência da árvore em plena primavera. Lembrou-se da primeira vez que havia sentado ao lado dela e daquele longo abraço como se tivesse feito amor. Estava prestes a fazer oito meses daquele abraço. Riu de si mesmo. Lembrou que se, de fato, tivesse fecundado aquela árvore estaria para “nascer” algo. O que? Lembrou-se do óbvio. Vida Nova.

Como poderia ter vida nova se tudo conspirava contra ele e contra sua felicidade? Ainda assim contemplou a beleza daquela árvore durante mais um tempo. Ao sair de lá se sentiu revigorado. Novamente uma força estranhamente positiva tomava conta daquele homem. Sem motivos aparentes, riu para alguns conhecidos. Percebia que deveria haver alguma coisa no mundo que trouxesse motivação para sua vida. Neste momento sentiu uma brisa estranha no seu ouvido e isto lhe deu um arrepio. Não de morte, mas sim de vida. Olhou com atenção e viu a bruxinha verde que sorria abertamente para ele. Finalmente a magia dava, de novo, um sinal positivo pra ele. A dúvida agora era de como ele iria fazer com que aquele clima horrível se tornasse profundamente harmonioso entre aqueles dois? Ele haveria de ter uma resposta. Nestes meses aprendera a respeitar todos os sinais que a magia lhe dava. Ainda que não seguisse a todos, os respeitava cada dia mais. Estava convencido na força que a natureza e seus elementos exercem sobre nossa vida e nosso destino.

Por seu lado, Isadora se consumia diante da forma como Pierre a tratava. Cada vez mais se sentia abandonada e não via como reverter àquela situação. Mas as surpresas nesta fase de sua vida só estavam começando.

Para sua surpresa, Pierre chegou sorrindo em casa. Ela decididamente não entendia mais nada. Seu amado estava cada vez mais delicado e dedicado para com ela. Ele tomou um longo e demorado banho, barbeou-se e ainda acariciou o rosto e o ventre dela prometendo que naquela noite iriam resgatar o que havia de melhor existia entre eles. Exatamente ele não sabia como ser carinhoso. A vida havia deixado ele rude, grosso, cruel. Mas a sensação que a magia deixara em seu coração seria o suficiente para ele agir como nos seus melhores dias.

O dia voltou a passar de maneira lenta. Chegou a pensar que o indício que a magia lhe passara naquela manhã não passava de um falso sinal que recebera. Porém aquela sensação de paz e de amor eram tão boas e tão intensas que certamente algo mágico estava para acontecer entre Isadora e ele.

A mulher, por seu lado, estava pensando em retomar suas atividades profissionais. Pensou, enquanto esperava por Pierre, que se voltasse a trabalhar o mais rápido possível, poderia se dedicar mais ao amado. Daria tempo para sentir saudades cada vez mais sem ficar pensando bobagens durante todo o seu dia. Era isto. Sabia que sentiria a falta do seu homem, mas era necessário que retomasse sua carreira profissional. Estava decidido. Durante a noite e após o jantar ela tocaria neste assunto com ele.

Naquela noite Pierre chegou mais animado que de costume. Beijou-a com paixão e sem deixar que ela dissesse alguma coisa a arrastou para o banheiro. Despiu-a com o carinho da primeira que vez que se amaram e contemplou aquele corpo moreno, nu, diante dele como se fosse desvirginá-la. Não demorou nada para que Isadora se entregasse aos braços do amado e ali, no banheiro mesmo, se amaram como dois animais no cio.

Mal saíram do banho e Pierre já ia arrastando sua amada para a cama, quando ela se lembrou do jantar e que havia comida no forno. Riram muito e lentamente foram se recompondo. Nem o fato dela ter passado no ponto do sal no tempero da comida foi fato para que eles desistissem do amor. Muito se riu muito se acariciou muito se beijou muito se amou, mas nada se conversou.

Isadora ainda tentou tocar no assunto, mas ouviu de Pierre que aquela não era noite e nem aquele era o momento para se discutir a relação. Ela tentou resistir, mas acabou cedendo. Havia sido uma noite como os dois nunca tiveram e mais a mais tinha bebido duas garrafas de vinho. O bom senso indicava que se esperasse o melhor momento para se tocar no assunto. E assim, os amantes foram vencidos pelo cansaço e pelo sono, e nus dormiram abraçados sob as bênçãos de uma lua cheia fantástica de bela.

Mal o dia amanhecera e Pierre já estava em pé. Aquilo por si só já era uma novidade. Desde quando ele era capaz de levantar sem que o despertador cobrasse dele suas obrigações diárias? Fazia muito tempo. A necessidade de caminhar e de se encontrar com aquela árvore era mais que urgente. Esqueceu até o celular, do qual não largava por nada. Só colocou uma roupa adequada para uma bela caminhada, juntou seu MP-4 e pôs-se a andar.

Aquela manhã de fim de primavera e início de verão estava perfeita. Até porque, com o horário de verão as caminhadas matutinas pareciam mesmo ser mais leves e as pessoas pareciam ser mais felizes. Ou será que ele via toda esta felicidade nos outros porque no fundo se sentia assim também? Começou a pensar nisto, mas logo desistiu. Havia chegado ao seu destino. Estava diante daquela árvore imponente, bela, cheia de folhas. Pela segunda vez na vida sentiu-se extasiado diante daquela árvore e repetindo o gesto de exatos oito meses antes a abraçou com o mesmo fervor e furor que havia abraçado Isadora durante boa parte daquela noite, e, num novo passe de mágica sentiu que, depois de um longo tempo, ela retribuiu ao abraço que Pierre deu nela.

A seiva da vida pulsava nele novamente. Entendeu que o amor se refazia no seu coração. Sentia a alma pulsar. Era o que havia perdido que estava se refazendo? Não sabia. Mas nunca mais quis ousar desafiar as forças da natureza.

Mas a face mais cruel da natureza é a natureza humana. E desde que o homem se conhece por homem a curiosidade é uma das características que traz inato consigo. Por que com Pierre seria diferente? Não, nunca. Ainda mais pra ele que pensava ter redescoberto a magia do amor não seria aquilo, agora que iria interrompê-lo. E não foi. Quem dera se ignorasse seus instintos mais básicos...

Chegou em casa pronto pra tomar um banho e recomeçar seu dia. O Natal estava chegando. Pela primeira vez – depois de muitos anos – estava pensando neste evento. Agora sim, sentia que o natal se refizera em sua vida. Havia, finalmente, um motivo pra se comemorar esta data. Pobre Pierre...

Havia de descobrir em muito pouco tempo o sentido do adágio popular que mostra que... “alegria de pobre duro pouco”...

Isadora ainda dormia. Riu para si mesmo. Achou engraçado o fato dela não ter acordado ainda. Justo ela que apreciava, como poucos, o amanhecer. Agora ali, nua, desfalecida. Será que sonhava? Será que a noite tinha tido pra ela o mesmo significado do que pra ele? Logo saberia.

No banho pegou-se cantando. Percebeu que, decididamente, não era mais o mesmo. Quantos anos fazia que ele não cantava? Era, por assim dizer, uma cigarra mutilada. E ele era um ser mutilado na alma, onde a mutilação é, mas doída e que, praticamente, não há prótese ou fisioterapia que dê jeito. No entanto, a presença de Isadora em sua vida havia feito com que ele mudasse completamente.

Ainda no banho começaram a vir flashes da noite anterior e a excitação tomou conta dele. Não se conteve. Depois de muito, mas muito tempo mesmo masturbou-se em baixo daquela água que parecia naquela manhã de fim de primavera com cara de alto verão, mais deliciosa ainda. Rindo ainda mais saiu cantarolando do chuveiro. Percebeu um cheiro delicioso que vinha da cozinha. Isadora havia acordado e preparava seu café da manhã. Isto seria a consagração daquela noite maravilhosa que os dois tinham dividido com uma cumplicidade poucas vezes vista desde que eles formaram um casal.

Entrou no quarto e viu que sua amada não estava na cama. Era tudo o que poderia querer naquele dia mais que especial. Lembrou outra vez da magia e deu-se conta que era dia 13. Riu, novamente. Desde quando 13 dava azar? Não aquele dia 13 de dezembro tinha começado mais do que especial e não haveria de ser uma superstição tola que o faria acreditar naquilo. Ao chegar à cozinha, deparou-se com Isadora nua, apenas cobrindo aquele corpo branco por um avental. Mal olhou a companheira e ganhou um delicioso, ardente, sedento e excitado beijo.


Era praticamente um convite que Isadora fazia para que dessem um bis na noite anterior. E era tudo o que ele queria naquele momento se não fosse sua responsabilidade e seu zelo profissional. Seu corpo clamava por mais sexo, paixão, entrega e lascívia, no entanto sua mente cobrava dele os compromissos do dia.

Estavam para entrar as férias forenses e ele poderia, então, dedicar mais tempo a sua amada. Sentia a árvore brotando cada vez mais em seu corpo. O verão que se avizinhava prometia ser intenso como há muito tempo não provara. Percebia nitidamente, que ficaria menos tempo com os amigos no bar e muito mais tempo com a mulher da sua vida. Era incrível. Isadora havia estado sabe-se lá nos braços de quantos homens no período em que sumiu da vida dele e, ainda assim, a queria ainda mais com a mesma força do que da primeira vez que os olhares se cruzaram.

Sua concentração estava diminuindo. Sua produtividade, idem. Sua amada agora era toda a atenção que ele tinha e onde canalizava toda a energia, o tempo e o amor que Isadora merecia. Nada o removia disto. Tinha claro na sua mente que há qualquer momento poderia recuperar a atenção e voltar ser o advogado respeitado de meses atrás. Agora com mais motivação ainda. Pois o amor voltara com mais força ainda.

Naquele dia não foi almoçar em casa. Aproveitou o horário de almoço e foi ver presentes de Natal para Isadora. Reservou alguns, mas não resistiu ao ver um sapo enorme de pelúcia verde. Lembrou da bruxinha e como se aquilo fosse uma forma de agradecimento ia levar o mimo até ela. Com um sorriso sem tamanho nos lábios voltou para o escritório e não via a hora de estar na audiência que teria no período da tarde para ir correndo até os braços da amada. Tudo caminhava bem até então. O dia havia chegado ao meio e a perspectiva de mais uma noite plena de amor estava delineada no horizonte. A vida de novo sorria para Pierre. Ou não?

Tudo caminhava, enfim, para um final de ano como há muito tempo não desfrutava. Até aquela audiência difícil naquele dia acabou sendo conduzida a bom termo. Aí começaria o novo calvário de Pierre.

Ao final da audiência, a bruxinha verde se fez presente de novo. Fazia tempo que ela não aparecia pra ele. E novamente aparecia chorando. Ele entrou em pânico. Dali pra frente tinha decidido nunca mais desprezar os sinais que a magia nos manda. Mas o que poderia ser tão triste agora? Tudo estava, pleno, lindo, maravilhoso. Pensou no óbvio. A mãe de Isadora. Quase acertara.

Ao chegar ao escritório percebeu que a mãe de sua amada havia ligado para ele sete vezes. Imediatamente retornou a ligação. Seu coração gelou. A pergunta era simples, mas nunca ninguém havia feito e muito menos falado para ele. Desconfiava mas não poderia ser verdade. E mesmo sendo verdade, por que demoraram tanto a lhe contar? Sentiu-se apunhalado.

Depois de tudo o que tinha feito, descobrira que Isadora era bipolar. Isto justificava, e muito, várias atitudes dela. Mas por que logo agora sua mãe trazia a verdade á tona? Por que não disse antes? Por que não pediu para acompanhá-la com seus remédios?

Mal terminou de formular a si mesmo as perguntas que não queriam calar em seu coração e percebeu de novo o sinal da magia se manifestando numa nova aparição da bruxinha verde. Um frio de morte desceu pela sua espinha. Saiu ás pressas e foi correndo para casa. Entendera, enfim, que o telefonema da mãe era um aviso do que Isadora estava ou poderia fazer a qualquer momento e, por nada deste mundo, ia deixá-la sumir na poeira como da última vez. Esqueceu o mimo que havia comprado. Poderia entregá-lo mais tarde. Importante era continuar fazendo aquela mulher feliz, como ele estava se sentindo.
Conforme ia chegando a sua casa, seu coração apertava mais forte. Não gostava daquela sensação. Tomou coragem. Ergueu a cabeça e entrou mesmo imaginando o que encontraria. Não, o pior não havia acontecido. Isadora não se matara como sua primeira intuição o revelou. “Apenas” o deixara novamente. Desta vez com uma longa carta em que pedia perdão pela atitude covarde que estava tomando, mas que o melhor para os dois era que eles ficassem cada um no seu mundo. O mundo, novamente, desabara sob a cabeça de Pierre.


12 de janeiro



Mais uma vez os planos de Pierre tinham ruído. Tudo que se mostrava perfeito caiu terra abaixo como as folhas caíam impiedosamente daquela árvore.

Do dia que Isadora sumiu até 12 de janeiro ele não apareceu mais no escritório. Percebeu que nem sua carreira profissional era mais relevante. Tornara-se um zumbi, um morto vivo. Sua única amiga era a árvore, exatamente por ela ser o oposto dele.

Enquanto ele definhava como um verdadeiro trapo humano ela se impunha cada vez mais bonita e frondosa naquele verão. Neste breve período pensou várias vezes em tirar sua própria vida, mas algo fazia com que ele não cometesse tal desatino. A bruxa verde lhe dava esperanças porque, mesmo aparecendo triste, ainda aparecia pra ele. Isto era sinal que sua sorte poderia virar positivamente. Apegara-se a isto como se fosse o último fio de esperança que o mantivesse vivo.

O natal que seria perfeito foi como o resto daquele ano foi para ele. Entediante. Nunca entendera o porquê das pessoas ficarem tão felizes no período de virada de ano. Achava isto mais uma hipocrisia social. Mesmo os valores religiosos que adquirira na infância agora não lhe faziam o menor sentido. A vida tornara-se inglória, ingrata, repetitiva, sem graça. Mais uma vez o álcool voltou a ser seu amigo inseparável.

Durante a semana entre o natal e o ano novo teve a vida mais desgraçada que um ser humano possa ter. Misturava lágrimas e álcool sem parar. Foi uma semana em que ficou bêbado permanentemente. Habituara-se a emendar um porre no outro. Os poucos intervalos era para chorar a mísera vida que levara nos últimos anos e falta de sentido que o que para ele não passava de “sub – existência” cada vez mais invadia seu ser.

O pior de tudo é que continuava recebendo os sinais do destino e do mundo da magia, mas não queria mais acreditar em nada. E cada vez que recebia um sinal era como se tivesse entrando num surto psicótico. Olhava para o ar, para os lados, para baixo, para qualquer direção e começava a xingar a bruxinha verde que teimava em aparecer na sua vida. Estava estressado com tudo aquilo. Não queria mais sinal nenhum de nada. Que o destino, bruxas e borboletas o deixassem ser infeliz como ele havia imposto a si mesmo.

Borboletas? Como se lembrara daquela borboleta roxa? Desde que começara a ver a bruxa verde nunca mais lhe ocorrera no pensamento à presença da borboleta. Riu da sua desgraça. Só faltava mais esta: agora uma borboleta roxa a vir a povoar-lhe os pensamentos. Mais uma vez a magia mostrava que o destino pode muitas vezes nos parecer cruel, mas do nada faz com que passemos a dar valor a coisas ínfimas, insignificantes.

Ninguém mais o suportava. Ninguém tinha notícia de Isadora. Ninguém sabia mais o que dizer para ver aquela pobre criatura se reerguer. Ele não confessava, mas adorava isto. Novamente a idéia do suicídio voltava com força total e, via-se encurralado no que pudesse dizer respeito á felicidade.

E foi neste espírito que Pierre passou aquela virada de ano. Várias garrafas de uísque, algumas de vodka, inúmeras de cerveja e música de décima quinta categoria. Dançou sozinho feito louco. Declamou Neruda. Imitou vários cantores. Chorou, de joelhos, a ausência de Isadora e num grito agonizante caiu desmaiado de tanto beber no chão imundo da sua sala.

Acordou no novo ano com uma ressaca que há muito não tinha e pela primeira vez sentiu que aquele poderia ser o último ano de sua vida. Sentiu um certo alívio, porque não agüentava mais viver daquele jeito. Sua missão nesta vida estava mais que cumprida. Ser infeliz era seu destino? Então que o destino se encarregasse de levar mais rápido ainda a sua alma. Pelo menos aquele sofrimento acabaria de uma vez.

Sentiu que morreria não por suas próprias mãos, mas por sua própria alma. Estava mais que ferido nela e ainda não tinha coragem de atentar contra a própria vida. Vivendo a realidade de que aquele pudesse ser o último ano de sua existência começou a se despedir das pessoas, da magia, do mundo que o cercava.

Decidiu que naquele ano seria o mais útil e prestativo que pudesse ser porque já que era pra se despedir das coisas que levassem dele uma última boa lembrança daquela vida miserável que vivia. Foi até a velha árvore. A manhã estava quente. Ela, porém, permanecia impassível. Não dava o mínimo sinal de que aquele, efetivamente, fosse seu ano derradeiro. Riu sarcasticamente. Já tinha quase onze horas do ano novo e ele ainda não tinha deparado com a visão da bruxinha verde. Será que naquele ano a magia também o iria abandoná-lo?

Não quis responder á pergunta. Foi para a casa e depois de muito tempo abriu sua página no Orkut. Havia 21 pedidos de adição. Nem conhecia a maioria das pessoas mais resolveu aceitar todos os pedidos. Quem sabe ali não nasceria uma nova e derradeira amizade? Estava desanimado. Não via perspectivas reais que pudessem devolver a ele o prazer de viver. Ser infeliz era sua sina, seu destino. Ele que se acostumasse a esta realidade e fizesse dela sua companheira até o momento de expirar ou dele por termo final á sua vida.

Assim pensando foi estabelecendo um novo círculo de amigos. Mas nada que o empolgasse. Havia realmente desistido de viver. Todos ao seu redor, invariavelmente, o enganavam de alguma forma. Mesmo as convicções mais fervorosas que se agarra ao longo da vida, não passavam agora de um fio tênue que separa a vida da morte.

Descobrira mais uma nova lição na sua vida: pra se sentir e se fazer útil na nossa vida ou na vida de alguém é preciso que haja motivação tanto nossa quanto das pessoas a quem pretendemos nos atingir com o nosso bem. Este, decididamente, não era seu caso.

Era até emocionante, por assim dizer, a maneira como Pierre apegara-se á vida ou a algo que o fizesse dar um novo sentido a ela. Tentava, de todas as formas, tirar Isadora da sua mente e do seu coração. Tudo em vão. Impossível tirar da mente o que a alma reteve para sempre dentro dela. Fazia de tudo para se tornar útil a pessoas ou a causas que tomassem seu tempo e que não pensasse mais em ser aquele seu último ano de vida.

Relacionamento afetivo não os queria mais. Sexo, apenas e olha lá. E assim, ele iniciou seu novo ano. Trabalhando como nunca, dedicando-se ás causas novas, toda a energia da sua vida. No entanto, Isadora não saía da sua cabeça. Precisava fazer algo pra tirar ela de lá ou fazer com que ela pelo menos adormecesse na sua lembrança, na sua mente.

Isadora sempre foi e sempre seria uma doce lembrança em sua vida. Queria mesmo que ela fosse uma doce presença, mas sentira mais uma vez que o destino conspirava contra ele. Tentava lutar bravamente contra aquela sensação de vazio e deixar sua vida mais completa. Seu final de ano tinha sido extremamente sem sentido e agora queria dar um sentido novo á sua vida.

No dia 8 de janeiro daquele ano acordou com uma estranha sensação. A mesma sensação que sentiu quando Isadora voltara para ele grávida de outro. Não, não poderia ser isto novamente. Riu da mania que estava dando a ele mesmo. Como acreditar em premonições, sonhos, avisos premonitórios? Isto era ridículo...

Já ia para três semanas que não via mais a bruxinha verde. Nunca mais havia procurado conhecer mais nada do mundo ligado á magia. A única coisa que o mantinha preso a esta força vital era aquela velha e cada vez mais bonita árvore. Isto ele realmente estranhava, pois quando mais se afastava mais se sentia atraído por ela. Teria sido aquele abraço uma troca vital de energia de dois seres de mundos diferentes? Será que seria possível uma simbiose entre o mundo animal e o mundo vegetal?

Riu. Isto era pura paranóia. Nenhuma pessoa normal poderia pensar coisas como aquela. No entanto, aquele era seu estado de espírito. Ser louco era doce. A insanidade traz consigo uma doçura estranhamente insuportável para os seres “normais”. Pierre entendera esta frase, mas ainda não entendia o porquê. Mais uma vez esquecera que natureza nos dá e nos tira as coisas sem, necessariamente, nos dar a menor explicação disto.

E exatamente por isto ele começou a ver a natureza agir a seu favor...

Mal fizera o carro funcionar e visão que tanto temia estava ali, de volta. Sim a bruxinha verde voltou a entrar na sua vida. Era a primeira vez que aquilo acontecia naquele ano e ele deveria estar pronto pra isto. Mas por mais que queiramos assumir nossas sensações, nossos comodismos são infinitamente maiores, não é verdade?

E do nada a bruxinha reaparecera. Percebeu que os olhos da bruxinha não tinham mais o ar de peraltice do ano anterior. E novamente riu de seus espasmos paranóicos. Pensou consigo mesmo se a tal bruxinha teria amadurecido com o passar dos anos. Seria aquela a maior contradição na sua vida. Um ser tão especial como aquele amadurecer. Pierre havia lido uma coisa num perfil do Orkut que concordara absurdamente: “Amadurecer pode ser necessário, mas existe coisa mais entediante e monótona que isto?”

E de monotonia sua vida estava repleta. Queria aproveitar aquele ano com o máximo de imaturidade que pudesse ter e de solidariedade que pudesse dar. Sabia que seria mesmo seu último ano de vida. Não sabia responder por que, mas tinha mais do que claro isto na sua vida. Começara a entender os sinais da magia. Passou pela sua cabeça, pela primeira vez, que o mundo natural enviara um sinal comprovando o que já sentia em relação á sua morte. Daí a bruxinha parecer mais séria, mais compenetrada.

Mal acabou de pensar nisto e a bruxinha lhe sorriu um sorriso meigo, doce, apaixonado e simplesmente sumiu da sua vista. Aí, do nada, cantou a primeira canção que veio á sua cabeça. Não era um rock, não era um blues, não era um jazz. Era um samba de Chico Buarque. Quanto tempo Chico não vinha á sua cabeça? E a letra? Riu de si mesmo novamente e chegou no escritório cantarolando... “Quem te viu quem te vê, quem já te conhece não pode mais ver pra crer, quem jamais esquece não vai te reconhecer...”

O dia passou leve. Também pudera. Resolveu colocar todo o repertório que conhecia do Chico em dia. Precisava fazer mais isto em sua vida. Ouvir mais as coisas que lhe diziam ao espírito e não só mais ao coração. Precisava tentar voltar a ser humano, não um ser que vive para viver de acordo com a expectativa e a vontade alheias. Precisava lembrar um pouco mais do que ele mesmo havia sido e tinha se perdido no ralo da existência.

Não que fosse um pessimista. Mas a vida lhe impusera este estado de espírito. E Chico aliviou aquela terça-feira que havia amanhecido com uma sensação de mais um dia, na soma daquilo que chamamos vida, perdido.

Com a sensação do dever cumprido e da alma leve saiu de sua sala e, sem perceber, depois de quase um mês despediu-se de sua secretária. Ela retribuiu com um sorriso e quase estava esquecendo-se de dar a melhor notícia que ele podia receber até então. Isadora havia reaparecido. Mais que isto, havia ligado para seu escritório e pedido que ele retornasse a ligação. Ele recebeu o recado com um sorriso sem graça nos lábios. Ainda ouviu da sua secretária que era uma maneira de Deus retribuir tudo de bom que ele fazia para outras pessoas.

Não deu a menor importância ao comentário da secretária. Evitou ser desagradável com ela. Ela não sabia que estava divorciado de Deus fazia tempo e a coisa mais próxima Dele que ainda trazia consigo eram os sinais do mundo da magia. Acreditava, ainda, na lei do retorno. Mas muito mais por instinto do que por convicção. Via cada vez mais os nulos triunfarem. Via as pessoas vis assumirem o controle emocional das pessoas boas. Via os pseudos tornarem-se cada vez mais verdadeiros pela permissão que as pessoas do bem davam a eles. E ainda esperava ver a lei do retorno derrubar todas estas pessoas. Mas não que acreditasse de alma e coração que isto ainda fosse possível.

Quanto aquele bilhete o melhor era jogá-lo fora e esquecer de uma vez tudo aquilo. Era o melhor a fazer para e com aquela alma cansada. No entanto não tinha coragem. Ele que já havia rido tanto de tantas pessoas jurarem amor eterno e de um momento para o outro ver a eternidade vazar pelos vãos dos dedos agora estava naquela encruzilhada. A tal da razão praticamente implorava para que ele não retornasse a ligação. A emoção praticamente impunha sua vontade.

A emoção venceu. Ligou e, para sua sorte, o celular estava desligado. Agora sim a razão falaria mais alto. Teria o que dizer a quem o perguntasse se havia recebido o recado. Estava decidido. Não mais ligaria para Isadora. Se ela havia decidido que o melhor era sumir da sua vida que ela fosse feliz assim. Mais uma vez descobriu o quanto tolo são os homens que, verdadeiramente, amam.

E como todo o ser que ama, sorriu, Não um sorriso contido, quase imbecil, totalmente forçado. Mas sim aquele riso quase ingênuo, bobo mesmo, de quem esbanjava felicidade. Não sabia explicar por que sorria. No entanto voltara a sorrir e isto o bastara. A doce ilusão de que pudesse, novamente, haver um reencontro entre Isadora e ele eram o suficiente para rir e até para fazer com que seus olhos voltassem a brilhar.

E com a alma leve deitou mais cedo naquela noite. Dormiu até quatro da manhã um sono leve, revigorante. No entanto, acordou novamente com pesadelos e que, de certa forma, envolviam Isadora. O peito contraía como contraem os músculos no momento de uma câimbra. Com o ar faltando – havia pensado que chegara a hora de ir embora desta vida – levantou-se e foi até a cozinha beber água. Pensou em algo mais pesado, mas o dia havia sido leve demais para ele, naquela hora, começar a embriagar-se. E o que imaginou que pudesse acontecer, de fato acabou acontecendo.

Desde a geladeira até por onde pensasse em ir naquela casa lá estava ela, aquela bruxinha verde, como um verdugo sobre sua mente a impor que ele ligasse para ela. E para piorar as coisas, aquela bruxinha agora parecia mais amadurecida. E isto o irritava mais ainda. Custava, pelo menos ela, ser irresponsável um pouco?

Indiferente aos pensamentos de Pierre ela continuava a exercer verdadeiro controle sobre sua mente, como se obrigasse ele a falar com ela. Ele havia decidido que não faria mais isto. Saberia o quanto isto poderia doer nele. Mas era uma decisão irreversível. Ainda não sabia que, no mundo da magia, o irreversível torna-se o improvável e o improvável torna-se o possível mais desejado.

E, mais uma vez, como de costume acabou seguindo o que a emoção pedia para que ele fizesse com a máxima urgência. E foi assim que as quatro da manhã pegou seu celular e ligou para Isadora.

Percebeu que ela sussurrava ao telefone. Imaginou que fosse por causa do adiantado da hora. No entanto, Isadora, mesmo em sussurros, parecia ter muito assunto para tratar com ele. Não parava de falar. Pensou que estivesse embriagada, possibilidade que rapidamente afastou porque sentia que a voz estava forte, com sono, mas forte, não trôpega.

Pensou que ela pudesse ter se drogado. Mas logo descartou esta idéia. Isadora não era dada aos vícios ilegais. Álcool e tabaco, ás vezes. Nada além disto.

E depois de quase duas horas falando ao telefone, Isadora perguntou quando que ela poderia vê-lo. Aquilo chegou aos seus ouvidos como a mais doce canção e a mais cruel punhalada. Como, logo ela, poderia pedir para vê-lo depois de tudo que fizera com ele? Não, deveria ser uma nova brincadeira dela. E, neste espírito, marcou com ela para se encontrar naquele sábado na casa dele. Devia ter dado mais ouvidos á sua avó quando ela costumava dizer que... “Coração é um terreno que ninguém pisa”...

Pela primeira vez, desde que iniciou esta relação sem início, meio e fim com Isadora, não deu muita relevância para a questão tempo. Estranhamente estava frio em relação a ela. Precisa de um algo a mais que o fizesse estar totalmente ligado a ela. Sabia que isto reacenderia a chama. Mas não estava disposto a arriscar-se novamente. Estava ferido demais, para apostar suas fichas neste novo recomeço.

E sem perceber voltou a levar a vida com a modorra de sempre numa vã tentativa de fazer com que o tempo não passasse e ele não tivesse que passar por mais uma decepção com Isadora. Era engraçado para ele isto. Quanto mais Isadora o decepcionava mais ele se sentia atraído por ela. Que mistérios habitam o coração humano?

Desistira de buscar a resposta para estas perguntas. Preferia viver a vida dia após dia sem sobressaltos. Mais uma vez estava enganando a si mesmo. Isadora mexia com cada célula do seu corpo. Impossível aplicar o “carpie diem” na vida quando as pessoas se transformar em tsunamis do nosso coração.

E como o tempo é implacável, inevitável e senhor da razão o sábado chegou. Sentindo aquele aperto imenso no coração foi caminhar para não pensar naquela noite. No meio do caminho percebeu que os rostos cobravam dele mais alegria de viver, mais entusiasmo. Pensou que eles só cobravam isto porque não conheciam um terço da amargura que trazia consigo. Se soubessem não cobrariam nada nem dele nem de ninguém. Aliás, isto o irritava muito. Como as pessoas podem pedir ânimo, se nossa alma parece ter sido raptada por alguém a quem a entregamos, sem limites, sem condições, sem pactos e sem chantagens? Não decididamente ânimo era uma palavra que estava riscada do seu dicionário fazia muito tempo.

Ainda assim tentou encontrar algum facho de entusiasmo que pudesse acrescentar aquele dia. Era difícil. A incredulidade havia tomado conta de si. Isadora era bipolar e havia um hiato de tempo considerável entre a ligação e aquele sábado. Tudo poderia acontecer e ele deveria estar preparado para este tudo. Chegou até a árvore. Quem sabe ela poderia dar um sinal positivo do que lhe aguardava naquela noite.

Sentiu que a boa companhia árvore estava diferente naquela manhã de verão. Será que o calor havia prejudicado a beleza natural dela? Não, não deveria ser isto. Teve o ímpeto de dar um novo abraço tentando extrair dela a energia que ela passava com ele. Mas como a impressão não tinha sido das melhores, era melhor não arriscar.

Depois de desabafar – em pensamento - com aquela árvore foi para a casa. Aí a magia se impôs novamente em sua vida. A bruxinha verde reaparecia hora rindo muito, como se tivesse descoberto a felicidade plena, hora chorando compulsivamente como se a possível felicidade plena e eterna não passasse de mais algo transitório em sua vida. Mas o fato era um só: amava incondicionalmente Isadora. E isto acabou dando a ele o que menos esperava naquele dia ânimo.

Voltando á velha casa viu a bagunça que estava e, desta vez, pôs em ordem tudo. De repente se pegou animado, feliz e até cantarolando novamente. Riu novamente de si mesmo. No entanto, dessa vez o destino reservara uma boa surpresa para ele: na hora exata, Isadora encostou o carro na frente da sua casa. Pontualidade nunca foi uma coisa pela qual ela primava. Isto sim era o primeiro sinal que aquela noite poderia devolver a ele a alegria e a motivação de viver que havia deixado de lado desde aquele dezembro que preferia apagar de vez da sua mente. Era, sim uma perspectiva real de que o amor poderia se fazer naquele momento, naquela casa, com aquelas almas. Era o destino conspirando a favor deles mais uma vez...

Ela chegou e foi entrando com um sorriso tímido no rosto. Ninguém sabe explicar, mas ele havia deixado a porta encostada e ela teve a nítida impressão de que ele a esperava. No entanto, Isadora teve uma recepção fria desta vez. Não condenava Pierre. Ela, no fundo, sabia o que havia feito a ele. Ninguém brinca impunemente com o coração alheio. E ela sabia que havia feito isto.

Apesar de tudo isto, quando os olhares se cruzaram as almas falaram mais alto e o silêncio dos lábios unidos foram os gritos reprimidos que as almas queriam soltar livremente no espaço. Esqueceram do jantar e deram vazão ao que os corpos e os corações pediam. Sem se darem conta, logo estavam se amando com toda a fúria que corpos separados bruscamente buscam. Não se preocuparam com nada e com ninguém. A linguagem de corpos unidos é a sagração da alma. E foi assim que aqueles templos da alma se renderam á magia do amor e passaram o final de semana se amando sem a menor culpa, a menor palavra, a menor desculpa.

Ao dar meia noite do dia 12 de janeiro ouviram fogos espocando no ar. Riram muito. Entenderam, mais uma vez a doce linguagem, a suprema linguagem da magia em suas vidas. Era, para eles, o ano novo que enfim chegava e a promessa de vida na sua plenitude. E sem pedir licença nem perdão colaram novamente os corpos no sublime encontro de alma e coração.


15 de março


Depois de tanto se amarem resolveram conversar sobre a vida. Mais uma vez tudo havia se conspirado contra eles. Ela teve uma crise de bipolaridade e totalmente sem noção do que fazia achou que não fosse a mulher ideal para ele. Ele riu daquela confissão e tentou mostrar o quanto a amava. Ela mais uma vez não sabia diferenciar amor de paixão, entrega de possessão, liberdade com ciúmes imbecis. Ele sabia, mas não sabia lidar com perdas. Afinal todo o ser humano é assim. Pode saber administrar perdas, mas saber mesmo lidar é praticamente impossível.

Com uma conversa verdadeira sentiram-se cada vez mais atraídos um pelo outro. A verdadeira atração do amor está na sinceridade do que se fala. Quando se tenta tapar a boca do ser amado pra dizer alguma coisa que o agrade, começa-se a cavar rapidamente a cova do amor. Por mais eterno que seja a jura, não a amor que resiste á falsidade. Este era o medo que movia Pierre. Até que ponto, Isadora estava sendo sincera com ele desta vez? Entendia o transtorno que ela sofria, mas falta de sinceridade tem alguma coisa haver com bipolaridade?

Enfim como decidira morrer naquele ano resolveu acreditar na sinceridade dela. Ainda que isto fosse mais uma ilusão do seu coração, seria mais fácil suportar assim uma nova separação. E assim retomou sua vida, sua carreira e seu contato mais íntimo com o mundo da magia.

No dia seguinte voltou ás suas caminhadas e percebeu que aquela árvore dava sinal que estava no fim da vida. Parecia mais seca, menos imponente, menos cheia de vida. Pensou estar delirando. Afinal, haveria tanta cumplicidade assim entre os dois que chegariam a morrer no mesmo ano?

Decidiu esquecer daquela idéia de morrer naquele ano e procurar viver a plenitude do amor que estava acontecendo com ele desde aquela noite de sábado. Se fosse para ser golpeado pelo destino mais uma vez, estaria vacinado. Caso contrário que finalmente o mundo sorrisse para ele e para seus sentimentos e que ele pudesse efetivamente desfrutar do melhor que a vida tem pra dar.

Ao chegar em casa foi recebido com um farto café da manhã. Isadora sorria um riso de cumplicidade, de afeto, de carinho como nunca havia dado antes. Ele rapidamente tomou um banho e foi desfrutar do desjejum que sua amada havia lhe preparado naquele dia. Afinal, o mundo estava ao seu favor.

Até o tom de voz de Isadora havia mudado. Ela agora fala de uma maneira tão suave que parecia uma melodia tocada por anjos. Riu de si mesmo de novo. Até para pensar afetivamente em sua amada recorria á imagem dos anjos. Para ele, isto era mais uma prova da sua fixação na idéia da morte. Não entendia que anjos também povoam, e como, o mundo da magia. Às vezes estão muito mais próximos do que imagina nossa vã filosofia.

Isadora, curiosa como sempre perguntou por que ria dessa vez. Ele tentou disfarçar, mas já tinha aguçado a curiosidade da sua amada. Resolveu falar a verdade. Pensou que ela pudesse ter sido sincera com ele e se ele não o fosse com ela poderia por tudo a perder, novamente.

Ao ouvir as declarações de Pierre, Isadora ficou assustada. Sentira nas palavras dele um quê de verdade. Mais que isto, sentira que estava disposto a tirar sua própria vida se isto não acontecesse de maneira natural, como no fundo ele esperava que acontecesse. E mesmo pensando que isto era uma chantagem emocional dele, sentiu como a vida de Pierre estivesse, efetivamente, em suas mãos.

Delicadamente pediu prá que nunca mais tocasse neste assunto, porque isto tinha mexido muito com ela e que se fizesse algo neste sentido ela se sentiria muito mal. Aquilo foi uma punhalada em Pierre. A última coisa que ele queria fazer nesta vida era magoar Isadora, muito menos deixá-la com sensação de culpa. Mas precisava que ela soubesse a verdade. E. no fundo, não havia mudado de idéia nem de sensação. Verdade que queria mais do nunca viver toda a felicidade do mundo ao lado dela. Mas ela precisava conhecer todos os seus sentimentos novos.

O que Pierre havia esquecido era que Isadora estava bipolar. E quando se lida com alguém com bipolaridade, qualquer palavra vira um terremoto de proporções trágicas. Todo o cuidado com as palavras é mais do que necessário. Verdade que estava protegido pelo manto da magia e que as forças da natureza estavam, novamente, ao seu lado. Mas as palavras têm poder. Muito mais que imaginamos, na maioria das vezes.

E assim a beijou e foi para o trabalho. Isadora despediu de Pierre sorrindo e prometendo esperá-lo com um jantar mais do que especial. Ele saiu feliz e cantarolando. Ela esperou que o carro desaparecesse no seu campo de visão e com uma sede de informação nunca vista foi pesquisar tudo o que poderia saber do comportamento dos suicidas morosos. Tinha medo que Pierre fizesse o que havia prometido. Na sua cabeça não havia mais a declaração de alguém que pensara, um dia, em se matar mas que agora estava na plenitude da realização pessoal. Na sua mente estava a declaração de um suicida em potencial e ela tinha que fazer de tudo para que ele não cometesse aquele ato desatinado.

Enquanto isto, Pierre levava sua vida de maneira simples. Estava mais do que nunca crendo no poder da magia. Sabia que sua vida agora pudesse dar uma nova guinada. Afinal, com a presença de Isadora tudo ficava de um modo mais tranqüilo, mais feliz. Ele se tornara dependente dela. Não admitia isto, mas era o que de fato acontecia com ele. O fato dela não atender o celular fazia com ele perdesse o rumo, pensasse mil besteiras. Porém, ao ver seu rosto, seu sorriso, o dia mais nebuloso se transformava numa bela tarde de sol. Acreditava piamente que Isadora fosse o amor de sua vida.

Porém, Isadora não era mais a mesma. Tinha mudado radicalmente seu comportamento. Isto incomodava Pierre de uma maneira que só quem vive tal situação entende. Ela estava muito mais carinhosa, muito mais atenciosa, muito mais afetiva do que antes. Seria a bipolaridade? Novamente riu das perguntas que fazia a si mesmo. Por que ela simplesmente não poderia ter se tornado, enfim, uma mulher amorosa e dedicada como ele sempre sonhou?

Isadora, por seu lado, fazia de tudo para tirar da mente de Pierre a idéia da morte. Ela, particularmente, não acreditava em magia. A coisa mais próxima de magia que conhecia era um primo que era “Pai de Santo”. E pelas histórias que ouvia deste primo morria de medo que elas acontecessem de verdade. Por isto dedicava-se ao máximo a ele. Era capaz de qualquer coisa para agradá-lo.

Mas a magia tem seus mistérios e não é de bom tom que se queira explicá-los. Além da bruxinha verde que continuava aparecendo constantemente e com uma aparência bem mais agradável, havia também a árvore que parecia cada dia mais dar os últimos sinais de vida. O mais engraçado nisto tudo é que Pierre sentia o pulsar tênue da árvore como se fosse o seu pulsar enfraquecendo a cada dia. Tentava esquecer daquilo, mas toda manhã lá estava ela. Imponente é verdade mas cada vez com menos vida, com menos folhas, com menos imponência. Nunca soube se os outros viam aquela velha árvore daquela forma. Ele, no entanto, como velho amigo dela sentia a sua decadência chegando.

Foi aí que viu pela segunda vez a borboleta roxa. Engraçado que era a primeira vez que ela aparecia sozinha. Da outra vez tinha aparecido junto com a bruxinha verde. Foi só pensar isto e viu a bruxinha no tronco da velha árvore. Cara de choro. O coração disparou. O que poderia ser desta vez? Havia aprendido a prestar mais atenção nas coisas da natureza e mesmo não entendendo á primeira vista, começara a respeitar os sinais que ela lhe enviava. Alguma coisa acontecera com Isadora. Precisava voltar urgentemente pra casa antes que ela sumisse como das outras vezes.

Foi apressado e percebeu que a borboleta roxa o acompanhou. Aquilo sim deveria ser coincidência. Lembrou que nunca tinha visto, até então, uma borboleta roxa. Se não tivesse deixado de lado os estudos da magia e, principalmente, os da cultura celta ia descobrir o símbolo que se apresentava pra ele. A bruxinha verde aparecia, ora sim, ora não com ar cada vez mais “maduro”, mais preocupado. Tenso mesmo.

Chegando lá encontrou Isadora em estado de felicidade plena. Não entendeu nada. Como assim? Será que desta vez os elementos da natureza haviam lhe pregado uma peça? Estava tão atordoado em saber o que tinha acontecido com sua amada que nem deu conta que a borboleta roxa foi até o portão de sua casa e de lá voara rumo ao infinito. Quis saber o porquê de tanta alegria. Evidentemente que a primeira coisa que lhe passou pela cabeça era que Isadora engravidara novamente. Ledo engano. Desta vez o golpe seria mais forte.

Em êxtase disse que Leonardo havia ligado para ela. Ele – esquecendo o óbvio – caiu na besteira de perguntar quem era Leonardo. Ela gelou. Lembrou de seu estado suicida. Com calma explicou que Leonardo era seu ex-namorado. A ira tomou conta de Pierre. Quer dizer que o ex liga pra ela e ela fica neste estado de alegria? Mais uma vez se viu como um palhaço usado pelas hábeis mãos de Isadora.

Ela entendera o mal estar que causara. Nunca tinha sido muito boa com as palavras mesmo. Mas agora estava diante de um suicida em potencial. Tinha que tomar mais cuidado com as coisas que falava. Pierre, por seu lado, estava perdendo a cor. A possessão tomava conta do seu corpo como um todo. Isadora, usando uma habilidade poucas vezes vista pois Pierre sentado. Serviu a ele uma dose de uísque. Ele pediu que deixasse a garrafa ao lado. Fazia tempo que ele não bebia. Ela congelou ao ver os olhos dele. Disse que ia explicar tudo.

Explicou que Leonardo havia lhe telefonado para avisar que ela tinha sido chamada para trabalhar na Petrobrás, como relações- públicas. Isadora era jornalista. Tinha feito um concurso disputadíssimo para a Petrobrás. Tinha até perdido as esperanças de ser chamada. Mas era o emprego do sonho dela. Era o ideal dela. Era a maneira dela fazer o que mais gostava na vida sem sentir que a vida fosse um tédio. O problema é que entre a casa de Pierre e o serviço de Isadora haveriam longos 900 quilômetros de distância. Pierre entendera a cara de choro da bruxinha verde. Mais uma vez os dois seriam separados pela força do destino.

Pierre tentou dissuadi-la da idéia de aceitar o tal emprego. Isadora, esquecendo das tendências mórbidas que seu amado trazia no peito, bateu o pé e disse que não poderia perder esta chance. Tomado pelo ciúme, perguntou por onde andaria Leonardo. Ela explicou que ficaria por perto dele e não dela e que talvez ficasse á mesma distância. O coração de Pierre rasgou em dois. Ela insistia em dizer o nome dele ou então chamá-lo de “meu ex”. Se Isadora usasse um punhal extremamente afiado talvez doesse menos que a língua dela. Ela nem se dera conta de como a maneira com que falava feria duramente seu amado. Mas afinal era a promessa de uma carreira que ela vislumbrava pela frente. Estaria certo ela anular-se apenas para agradá-lo? Se fizesse isto não estaria se tornando desnecessária até na vida dele, em muito pouco tempo?

Por sua vez, Pierre via seu coração em frangalhos. Lutara muito para ter aquela mulher finalmente em seus braços e agora, assim, do nada sua carreira tornara-se mais importante que ele? Não, com certeza aí deveria ter algo mais que ela decididamente não queria se abrir com ele. Ela tinha mais que a bipolaridade. Tinha o poder de deixá-lo ainda mais paranóico do que de costume.

Depois de muito tempo, ele viu novamente as lágrimas brotarem nos olhos de Isadora. Ela tinha o mundo para descobrir ainda e ele a trancava numa gaiola. Tinha finalmente conseguido suas próprias asas mais ele as podara. Sem que ele entendesse nada, ela o beijou longa e lascivamente. Isadora sabia que sua vontade era cuspir no rosto de Pierre. Mas seu coração clamava que ela fizesse isto nem que fosse pela última vez. E, desta forma, deixando que o coração regesse o corpo e que os espíritos se unissem mais uma vez, amaram-se loucamente. Os sussurros criam eco e foram em direção do infinito até alcançarem as estrelas. E assim os dois caíram desfalecidos de amor, suor, paixão, e cansaço naquela cama.

Tudo parecia na mais perfeita ordem. Mas não é assim que o mundo da magia interfere no destino das pessoas. Até mesmo as relações mais firmes sucumbem ao destino quando brincamos com ele e com os sentimentos alheios. Isadora tinha pisado no coração de Pierre. E mesmo uma noite de amor intenso, de amor imenso não podem aplacar certas dores que peitos em chaga trazem acesos e vivos na mente. E as dores ali provocadas eram imensas, e de ambos os lados. Pierre ainda tentou se iludir achando que apenas mais uma noite de sono e os problemas estariam resolvidos.

Mas mal ele acordou naquela manhã quente de verão e constatou o óbvio. Ao acordar teve a visão que temia: a bruxinha verde e a borboleta roxa. Novamente não deu muita importância para a borboleta roxa, mas a presença da agora enigmática bruxinha verde fez com que seu coração gelasse. Podia esperar o pior. Com o olhar e corpo cansados da noite anterior ainda saiu gritando por Isadora pela casa toda. Nada dela responder. Novo golpe no coração.

Caminhou absorto procurando o nada, mesmo já tendo descoberto tudo e encontrou um bilhete deixado por ela que dizia assim: “ Meu anjo, te amo mais que tudo nesta vida, mas não posso renunciar ao meu futuro só pra te ver e te fazer feliz. Acredite que nunca vou amar ninguém como você mas preciso fazer isto para o meu e para o seu bem. Se cuida pra mim. Te amo. Beijos”.

O mundo havia, mais uma vez caído sobre a sua cabeça. O início do fim estava definitivamente deflagrado.



21 de maio

Desde o dia que Isadora o deixou para seguir a carreira dos seus sonhos, a vida de Pierre virou uma verdadeira montanha russa. Mais exatamente uma montanha russa que desce com toda a velocidade. Se o seu processo suicida era moroso, agora ele resolvera dar uma aceleração nítida a este processo.

Havia perdido o interesse na vida, nas pessoas e até na profissão. Não era mais o advogado dedicado e com uma bela carteira de clientes. Muito pelo contrário havia se tornado um profissional relapso. Quanto ás obras solidárias que havia gasto boa parte do seu tempo se dedicando a elas antes que Isadora voltasse, agora havia deixado tudo de lado. Nada mais o motivara.

Não tinha mais hora pra chegar nem pra sair de casa. Seus amigos mais próximos haviam indicado um jovem advogado para trabalhar com ele e era este que ainda segurava o escritório de Pierre vivo, dando dedicação e se inteirando cada vez mais dos processos e dos clientes. Para ele, seu jovem ajudante não passava de um rábula e como tal não tinha competência pra nada. Como sua vontade era de acabar com tudo, este ajudante seria a pessoa ideal para acabar fechando o escritório.

No entanto, estranhamente, não abandonara a magia e muito menos aquela velha árvore. Agora, no outono, estava mais fraca e mais decadente. Percebeu claramente que aquele seria o último outono daquela sua amiga que silenciosamente – de ambas as partes – dividiu com ele os extremos de suas maiores alegrias e de suas maiores tristezas. É estranho como o ser humano, quando chega na encruzilhada de sua vida torna-se apegado a coisas que antes nunca tiveram valor expressivo a ele e, em contrapartida, despreza todos os valores que construiu ao longo de sua vida por achar que tudo nesta vida é nulo. E se nos tornam nulos, por que não “retribuir” a gentileza aos outros?

Pierre havia feito uma descoberta incrível. Aquela árvore trocara, efetivamente, energia com ele. De tal forma que um estava ligado ao outro. Da mesma forma que ela dera seiva de vida a ele num determinado momento de sua vida, agora morria implacável sem que ele pudesse fazer nada a respeito disto. Esta é a síntese da magia. Ela troca energia conosco até quando deixamos ela morrer dentro de nós.

O que ele não havia entendido ainda com clareza é que até mesmo para a magia tudo pode ser reversível em nossa vida. Menos Pierre acreditava nisto. Com Isadora tinha ido embora sua alegria de viver e isto atingia diretamente a maneira como lidava com todos. Até o sorriso, muitas vezes forçados, que dava profissionalmente no sentido de animar as pessoas havia desaparecido do seu rosto. De repente, entendera porque a bruxinha verde não raramente aparecia carrancuda para ele.

Finalmente entendera que ela era uma espécie de anjo da guarda que o mundo da magia havia enviado para ele e que, como tal, reagiria a cada situação ele fosse viver. Resolveu viver a vida como nunca havia vivido antes. Com o mínimo de responsabilidade possível. Descobriu, afinal, que tinha alma pequena e portanto nada mais valia a pena.

E assim ele entrou na fase mais depressiva de toda a sua vida. Como nada fazia sentido para ele, resolveu cair de corpo e alma na vida boêmia. Não precisava, segundo sua própria consciência, dar satisfações de nada a ninguém. Até no seu escritório tinha alguém que cuidava de suas coisas. Isadora, a pessoa mais importante da sua vida, estava muito mais preocupada com a carreira do que com o amor que ambos sentiam um pelo outro. Sentiam? Ou será que só ele tinha vivido esta história de amor? Será que ela apenas não o havia usado para aliviar as dores que a vida lhe impusera? Seria ele uma “válvula de escape” dos sofrimentos de Isadora? As perguntas lhe fervilhavam na cabeça.

E decidido a não pensar mais nas respostas destas perguntas resolveu cair de vez na vida boêmia. Fazia muito tempo que não gastava seu dinheiro com profissionais do sexo, no entanto sua vida estava tão vazia de sentimentos e de razão para viver que estas pessoas pareciam as amizades ideais que ele poderia ter nestes que, para ele mesmo, seriam seus últimos dias de vida. Virou freqüentador assíduo da zona do meretrício e lá boa parte dos seus honorários ficavam.

Enquanto isto, do outro lado do país, Isadora progredia a passos largos. Verdade que sentia muito irritada quando era tratada como secretária de luxo por seus superiores e conseguiu entender porque no serviço público existe um tal de “estágio probatório”. Se você conseguir resistir ao assédio moral que fazem neste período é sinal que você tem aptidão para gozar das benesses que o emprego público te oferece. No entanto ela estava decidida dar uma reviravolta em sua vida. O pior é que ela dividia seu coração entre Leonardo e Pierre. Ninguém nunca a entenderia mas ela amava os dois igualmente. Mesmo cada um tendo feito ela sofrer de alguma maneira não conseguia esquecer de nenhum dos dois. E Pierre havia deixado sua vida...

Enquanto ela pensava isto, Pierre consumia a si mesmo vorazmente. Chegou ao extremo de arrumar uma “namorada” no bordel que freqüentara e a pusera uns dias em sua casa. Literalmente eram dias porque durante as noites ela voltava a “fazer a vida”. Neste curto período economizou um pouco. Tinha uma amante profissional dentro da sua própria casa. Dava tudo o que ela precisava e ela, em troca, cuidava da sua aparência e de sua satisfação sexual que era dividida sabe-se lá com quantos homens no mesmo dia. Quem não conhecesse Pierre teria a certeza de que ele havia dado uma nova guinada em sua vida e que, novamente, estava feliz com as possibilidades novas que a vida havia lhe dado. Mera ilusão. A bruxinha verde desaparecera de sua vida. Só apareceu para ele no dia 13 de abril. Ele riu. Lembrou que fazia um ano que Isadora havia entrado em sua vida. E teve a certeza que o número 13 era um número de azar.

Como todas as mulheres na vida de Pierre, esta também desapareceu. Sem mais, sem menos. Ele, na realidade, sabia que isto iria acontecer algum dia. Não tinha mais ilusões quanto á vida. Havia descoberto neste meio tempo que quem condena mentiras é quem mais tem a esconder dos outros. Como toda “acompanhante profissional” é uma mentira ambulante, imaginava o que ela havia de esconder dele. E sempre fez questão que o sigilo dela fosse mantido para que ficasse claro que a relação era um pouco afetiva e muito sexual, ou seja, era uma relação vazia.

A saída desta garota de programa da casa e da vida de Pierre o fez lamentar uma coisa e retomar outra. Lamentar porque agora teria que pagar por “favores sexuais”, justamente quando estava se reerguendo financeiramente. Retomar a visita a sua amiga e agora agonizante árvore. Era engraçado. A relação dele com a árvore era a mais verdadeira que tinha atualmente. Parecia que ela entendia a dor que ele trazia no seu peito. Parecia que ela vivia esta dor e se solidarizava com ela. Porém ambos estavam cada vez mais frágeis, mais vulneráveis diante das adversidades – naturais ou emocionais – que a vida lhes impusera. No entanto sentia algum tipo de energia vinda daquela velha árvore e refez um pouco sua disposição para a luta diária.

Havia decidido que ficaria em casa, enclausurado, quase um eremita e que faria os trabalhos on-line. Não queria manter mais contatos físicos com as pessoas. Não acreditava mais no ser humano. E sem que ele percebesse Maquiavel tornou-se sua leitura de cabeceira.

A cada página lida do filósofo alemão enxergava novas possibilidades para sua vida. Mais exatamente como se portar diante das pessoas. Como não cria mais no ser humano, por que não aplicar a teoria de Maquiavel neles? Sua solidão estava se tornando uma sordidez ácida e cruel.

Retomou a internet como sua companheira. A desculpa era perfeita. Como precisava manter contato constante com seu novo sócio, o MSN teria que ficar constantemente aberto. Entre um diálogo e outro – na maioria das vezes não sabia ou fingia não saber com quem estava falando – entrava em sites de relacionamento e, principalmente, nos sites ligados á magia. Este era o lado positivo da sua solidão. Descobria através principalmente da cultura celta, determinadas respostas para suas perguntas mais íntimas. Descobriu até que a borboleta roxa, além de ser sinal de bom presságio, era como os celtas enxergavam o simbolismo das bruxas pelos animais.

A mistura Maquiavel e MSN fez com que ele tivesse vários “casos” virtuais. Ria muito destes casos. Certa feita, falando com uma noiva – que jurava amar seu noivo – leu que ela lutara muito – a maioria das vezes virtualmente – para tê-lo com ela, mas que agora precisava de algo que esquentasse a relação entre os dois, como um caso extraconjugal porque estava cada vez mais fria e cada vez se entendiam menos. Riu do lutar via internet, porém isto fez com que tivesse uma idéia que o faria novamente mudar seu comportamento.

Por que não aplicar a teoria da amiga virtual na sua vida real? Por q ue mesmo á distância não tentava se mostrar pronto a perdoar e a reviver o grande amor que sentia por Isadora. Subitamente lhe ocorreu um pensamento apavorante: não seria tarde demais para lutar por isto? E se a bipolaridade de Isadora tivesse em alta? Será que ela o perdoaria? Novamente riu. Ela não tinha nada que perdoá-lo e sim ele é que tinha que perdoá-la, afinal quem o deixara era ela, mais uma vez. E quem o garantia que ela não tivesse reencontrado Leonardo e tivessem reatado o namoro? Não eram muitas dúvidas para ele tentar uma reaproximação com ela e ele estava ferido demais para correr mais um risco deste.

Mas mais uma vez a magia intercedeu a favor daquele casal...

Num dos seus passeios matinais, ao realizar sua visita á sua amiga árvore percebeu que a bruxinha verde e a borboleta roxa andavam á sua volta. Achou estranho a presença daqueles dois seres que há muito não apareciam juntos. A bruxinha estava com uma fisionomia envelhecida, triste. Parece quem perecia por amor era ela, não ele. Será que a bruxinha era um retrato da sua alma? Finalmente começava entender certas coisas. Sentou ao lado da árvore e depois de um longo tempo percebeu que pássaros estavam de novo naquela amiga silenciosa mas cúmplice de todos os atos dele. Seria aquilo uma evidência de que aquela árvore não morreria?

Pensou consigo mesmo se aquela árvore que estava mais do que condenada ainda tinha sinais claros de vida, porque ele não poderia tentar reverter aquele jogo? Sim, a luz poderia surgir no fim do túnel. O problema é que para se chegar á luz, passa-se pelo túnel e o este é sempre escuro e quase sem ar. Era assim que se sentia. Vegetar da forma que vegetava parecia ser mais lúcido do que viver uma punhalada atrás da outra. E nisto o destino tinha se mostrado um verdugo impiedoso.

A imagem da árvore mostrando sinais de reação, de vida nova ficou retida em sua lembrança, Ainda que não gostasse de admitir aquilo mexera com seus brios. Estaria ele desistindo da vida enquanto a árvore lutava bravamente contra o inexorável destino? Seria ele mais fraco que um mísero vegetal? Não, Pierre era orgulhoso demais para isto. Por mais evidente que fosse o sinal da magia e dos elementos da natureza ele só podia enxergar com os olhos da razão. E com os olhos da razão ninguém percebe quando as coisas realmente boas estão a nossa volta. Ao contrário, os olhos da razão entorpecem nossos sentidos e, não raro quando nos damos conta, acabamos numa infelicidade, num aperto da alma extremo.

Tentando esquecer todas estas coisas, Pierre foi para o seu escritório. Tinha muitas coisas pendentes. Novamente não percebera a mudança também ocorrendo com ele. Até então, desde que Isadora tinha seguido seu rumo, tornara-se um relapso em todos os sentidos. No profissional então nem tinha como negar. Não era a mais a sombra daquele profissional dedicado que fora outrora. E todos estranharam quando ele quis retomar todas as suas atividades e todas as suas causas pendentes.

Para Pierre, tudo aquilo tinha apenas um sentido: fazer com que o tempo passasse mais celeremente e com que ele pudesse viver seus últimos dias com o mínimimo de dignidade. Tinha certo que aquele era seu último ano, mas o fato de até a árvore estar mostrando sinais que desejava viver fez com que a seiva da vida brotasse nele. E daquele dia em diante Pierre começou a mudar...

No final do expediente dispensou a cerveja com os amigos. Mais que isto. Nem quis ouvir falar em ir ao tal bordel que se tornara assíduo. Tinha em sua mente tentar conversar com Isadora pelo MSN e tentar recuperar o tempo perdido. Ainda haveria tempo para isto? Será que Leonardo e ela não teriam reatado? E sua bipolaridade? Não estaria atacada? Todas estas perguntas só teriam uma resposta quando ele chegasse na sua casa.

E assim que chegou, tomou um banho rápido preparou um lanche mais rápido ainda e ligou o computador. A primeira imagem a aparecer no computador foi da bruxinha verde. A cara da bruxinha era a mais sisuda de todos os tempos. Era a cara mais triste desde que aquele ser apareceu a ele pela primeira vez. Era uma cara de adeus. Sim, ele começava a entender certos sinais do mundo da magia. A partir dali um primeiro grande vazio iria dominar sua alma. O que poderia ser, afinal? Tentou se concentrar na tela que também parecia suplicar que fosse aberta, numa última tentativa de ser ele uma pessoa feliz.

Porém naquele dia a magia parecia estar disposta a conspirar contra ele. A primeira imagem que viu na tela foi a da borboleta roxa. Não entendeu nada, porém como nunca havia dado muita atenção para aquela borboleta resolveu ver o que aconteceria com ele se tentasse conversar pelo MSN com Isadora.

Para sua surpresa, Isadora só não estava “on line” como conversaram apaixonadamente. Fazia tempo que não conversavam com tanto afeto assim. Sentia naquele instante o mudo novamente fazer sentido para ele. Sentia que suas esperanças poderiam ser renovadas. Sentia, finalmente o porquê daquela árvore representar tanto a vida para ele naquela manhã. Finalmente começara a entender e dar valor aos pequenos sinais que a natureza nos dá e que, na maioria das vezes, os desprezamos de forma vil.

A pergunta que teimava em sua cabeça agora era: Por que a bruxinha verde estava cada vez mais distante dele? Por que, a cada dia que passava, a fisionomia dela estava mais triste, mais carrancuda, mais envelhecida?

Decidiu que iria pensar nisto durante o dia seguinte. Naquele momento tinha apenas um foco em sua vida. Reatar o que havia sido desfeito por sua ignorância. Tinha a sensação de que fora ele o culpado pela separação. Esquecera que estava lidando com uma pessoa bipolar e que os sentimentos de pessoas assim, quando não medicadas corretamente, oscilam incrivelmente como se fosse uma verdadeira montanha russa. Esquecera também que ele tentara , inutilmente, exercer o controle sobre ela, sobre a carreira e o futuro dela de forma aparentemente amorosa. Mas era possessão pura. No entanto, o destino fez com que os dois colocassem – ainda que temporariamente – uma pedra naquilo tudo e desfrutassem, novamente, das delícias do amor e das alegrias que o amor nos proporciona quando estamos totalmente entregues a ele.

Estavam tão envolvidos com uma possível reconciliação e com a harmonia que tinha predominado naqueles momentos que teclavam sobre a vida e sobre a relação deles dois que nem perceberam que a madrugada invadiu a noite e que o dia começava a dar seus primeiros sinais quando foram rendidos, ela pelo sono e ele pela alegria e excitação de ter tido uma conversa animadora, aparentemente sincera e franca com sua amada. Antes que os dois saíssem do MSN, Pierre lembrou que era 13 de maio. Naquele dia os dois faziam 13 meses de namoro. Ela riu da lembrança porque pensou que só ela tivesse se lembrado da data. Trocaram juras de amor e cada um foi seguir sua vida real.

Os números, porém, insistiam na cabeça de Pierre. Decididamente 13 não poderia ser um número de azar. Pela primeira vez dava créditos á magia. Tantas datas para eles reatarem – e era esta a idéia que ele tinha fixa em sua mente – que tinha que ser logo no dia 13? Era, evidentemente, um sinal claro que tudo valeria a pena ser vivido. Como estava num grau de excitação tão forte resolveu caminhar e claro dividir a alegria intensa com sua amiga árvore.

Ao chegar próximo da árvore, percebeu algo que o deixou mais inquieto. Sua amiga vegetal parecia estar com mais vida ainda. Isto o deixou abismado. Como ela poderia ter recuperado a vida de uma hora pra outra? Decididamente ela estaria condenada ao corte em muito pouco tempo e agora dava sinal que o viço da vida estava mais forte que nunca em suas raízes. Chegou a pensar que a bruxinha verde tivesse trocado de energia com a árvore, mas logo descartou a idéia. Estava muito ligado ao mundo da magia para ter este tipo de pensamento. Depois lhe ocorreu um novo pensamento. A árvore captara a energia vital que brotava dele com a conversa que tinha tido com Isadora e por isto estava mais cheia de vida. Afinal de contas, ele também estava mais cheio de vida. Por que ela não poderia esbanjar vida também?

E neste ritmo Pierre foi para o trabalho. Todos estranharam a disposição com que ele, agora, se dedicara a seu ofício. Parecia um recém-formado, na ânsia de formar sua carteira de clientes. Nem parecia aquele advogado bem sucedido, disputado até por algumas empresas e por algumas Universidades que o queriam como professor ou até mesmo assessor jurídico. O que ninguém entendia era que ele havia transformado Isadora em seu mundo. E era ela quem dava mais ou menos ritmo a ele. E isto sim dava motivação para ele trabalhar, prestar mais sinais ao mundo da magia, amar, viver.

Durante uma semana, mesmo de maneira virtual, Pierre e Isadora viveram uma nova lua-de-mel. Tudo parecia conspirar novamente a favor dos dois. Só havia sentido falta da bruxinha verde. Fazia tempo que ela não aparecia. Será que isto era bom ou mau sinal? Não sabia, honestamente, interpretar – desta vez – os sinais do mundo da magia. Pierre apenas não cria como agora vivia cada vez mais interessado nas Leis Wiccas.

Na noite de 20 de maio, no entanto, Pierre percebeu que alguma coisa ruim poderia acontecer com ele. Depois de mais um dia produtivo de trabalho e cheio de energia para conversar com Isadora, viu a bruxinha verde. Nitidamente mudada, triste, com ar de despedida. Aquilo gelou até sua alma. Não, despedida novamente não. Devia ser coisa da sua cabeça.

Chegou em casa e sem comer nem tomar banho entrou no MSN. Isadora já estava lá. Mas começaram acontecer as coisas que ele tanto temia. Primeiro que Isadora demorava a responder a ele. Se numa relação de amizade, de cumplicidade, isto deixa o outro interlocutor nervoso, imagine numa relação afetiva, de namorados, de quem tem uma história juntos?

Isto provocou uma crise de ciúmes nunca vista antes em Pierre. Quem dá preferência ao amado não o deixa esperando. Isadora conversava animadamente com Leonardo, Pierre e mais alguns colegas do trabalho. Não acreditava que tivesse fazendo nada de mais. Pierre ia se consumindo cada vez mais pelo ciúme. Conforme aquela sensação ia crescendo, a bruxinha verde ia ficando cada vez mais entristecida e chegou a ver duas lágrimas correndo pela face daquele ser.

De repente, Isadora pediu que Pierre ligasse pra ela. Ele quis saber o porquê. Sua amada respondeu que adoraria dormir ouvindo a voz dele. Isto deveria ser um alento a ele e, realmente, quase foi. O problema foi que, em seguida, ela disse que havia despertado com Leonardo ao telefone. Ele, claramente provocando Isadora, disse que não havia nada melhor que acordar e dormir ouvindo quem se ama. Ela respondeu que não poderia haver coisa melhor.

Pierre ficou possesso. Ligou pra ela e berrando disse pra que ela o esquecesse que nunca mais o procurasse que parasse de fazê-lo de palhaço. Acabou de falar e desligou tudo. Olhou no relógio. Madrugada do dia 21 de maio. Dia da sua sentença de morte. Ou não.


30 de agosto


Os dias que se seguiram ao rompimento entre Pierre e Isadora foram dias de pura turbulência. Isadora tentava, desesperadamente, falar com Pierre que, sistematicamente, recusava a atendê-la. Estava sofrido demais para ouvir mais algumas desculpas dela. Preferiu por um ponto final naquilo, por mais que isto viesse a dor nele, e seguir seus últimos dias de vida. Mais do que nunca estava decidido a morrer e estava certo que desta vez ninguém o impediria.

Mais uma vez havia deixado o escritório nas mãos do seu novo parceiro e de sua secretária. Novamente buscara no álcool e na boemia seus parceiros mais constantes. Raramente ia caminhar. Era visto com freqüência com barba por fazer e usando suas roupas mais baratas, mais velhas, mais usadas. Era a representação física da depressão emocional. Nem se dera conta, ainda, que a bruxinha verde havia sumido de sua vida. Sua existência, agora, não tinha mais significado.

Quando não estava com o copo na mão , com uma prostituta nos braços ou – raramente – com seu trabalho na cabeça, estava com os dedos no teclado. Tornara-se um habitual freqüentador do MSN. Quem sabe ali surgiria uma amizade que valesse a pena investir. Ou até algo mais, por que não? Riu dele mesmo. Tornara-se um molambo e ainda queria viver um amor. Impossível isto. Só se vive um amor na vida. Quantas vezes cansou de ouvir isto. Por que só agora prestava atenção no que o ditado popular cansa de preconizar?

Aquele inverno – que ele acreditara ser o último de sua vida – foi a estação mais rigorosa em todos os sentidos. Primeiro porque as temperaturas estavam cada vez mais baixas. Depois porque ele não via mais razão para continuar vivendo. Até mesmo o tal do novo amor estaria descartado. Vivia por viver. Não dava a menor importância mais para nada ou para ninguém.

E quando pensava em se ligar ao mundo da magia ficava em casa porque não suportava a idéia de uma caminhada com um inverno tão rigoroso como aquele. É verdade que tinha saudade da sua velha amiga árvore e que tinha a curiosidade de saber como que ela estava. O escritório estava cada vez mais abandonado. Depois de muitos anos de carreira, pela primeira vez experimentara a sensação de ter sua carteira de clientes diminuindo cada vez mais. Nem o sócio que arrumara para trabalhar com ele estava fazendo com que os clientes não o deixassem.

Isto fez com que Pierre tomasse uma decisão que iria marcar definitivamente sua vida: retomar sua carreira profissional, ainda que parcialmente. Iria ficar no escritório apenas no período da tarde. Após isto, iria beber e viver no meretrício. Caso não fosse para o bordel, iria beber em casa e ficar no MSN até que o dia amanhecesse e então dormiria. Levantaria e faria sua caminhada – agora vespertina – e iria para o escritório. Sim, esta seria sua vida até que ele morresse. Neste dia tinha decidido que aquele seria o último ano de sua vida.

Poderia se dizer que Pierre era fraco, carente, inseguro e até psicótico. Mas ninguém poderia dizer que não era disciplinado. Ao contrário. Quando impunha a si mesmo um tipo de conduta levava ao pé da letra. Sofresse o que tivesse que sofrer. Assim tinha sido quando ele acompanhara Isadora no hospital e depois quando ele cuidou da sua , agora, ex-amada em sua própria casa. E como tinha imposto que sua vida teria aquela rotina, não estava mais disposto a discutir com ninguém sua decisão. Iria cumpri-la até que ele decidisse por termo final á sua vida ou até que o destino fizesse sua parte e tirasse dele aquela mísera existência.

E assim ele levou sua vida...

Numa manhã não tão gelada saiu para caminhar e rever sua amiga árvore. No dia anterior não tinha bebido muito e nem havia ficado até muito tarde no MSN. Por isto encontrara disposição para caminhar logo cedo. Também não cumprira o ritual matutino de ligar o computador e o rádio ao mesmo tempo para ouvir as notícias do dia. Se tivesse seguido sua rotinha talvez entendesse o que estava por vir daí em diante.

Chegou perto da sua velha amiga árvore e percebeu que ela estava até forte para a idade dela e pelas circunstâncias que ela tinha passado. Olhou- a contemplando-a. Nas suas divagações com aquela árvore lembrou que já fazia algum tempo que não via mais a bruxinha verde. Seria isto um alívio ou sinal que o pior estava por vir ainda?

Parou de pensar no assunto. Ele era um homem de uma certa cultura e não podia ficar perdendo seu tempo atrás de bruxinha verde. Sabia que ela tinha uma representação em sua vida, mas como nunca dera a devida atenção para aquele sinal que a magia lhe enviara não seria agora que daria, não é? Feita a reflexão e reencontrando com a agora fragilizada árvore resolveu ir para casa e ir também para o escritório.

No caminho, não percebeu que a borboleta roxa o seguia novamente. Pensou em tomar um banho demorado antes de ir para o escritório mas uma força o atraiu para o computador. Sem se dar conta estava no MSN.

De repente, para sua surpresa, Isadora entrou. Seu coração palpitou. Descobrira naquele instante que o amor por ela não havia morrido e estava apenas adormecido. Bastava um mísero sinal para que a velha chama reacendesse dentro dele. E o sinal estava dado. Porém, a magia iria mais uma vez se manifestar na vida de Pierre e os sinais estavam sendo dados de forma clara, mesmo sem ele perceber isto.

Não percebera que ao ligar seu computador uma borboleta roxa, idêntica a que o seguira até sua casa naquele dia aparecera. O que poderia ser isto? Mais uma alucinação? Não, não cria mais nisto. Tinha plena certeza do que vivia e dos sentimentos que trazia no peito. Sabia do vazio que sentia e de como podia levar isto. Nunca iria explicar a ninguém aquilo. Até mesmo as dificuldades de ereção que teve com prostitutas seria um sigilo que levaria para o túmulo e este dia estava muito próximo de chegar.

No fundo de sua alma sabia que era o amor que sentia por Isadora que não o fizera um homem potente, viril como das vezes que teve com sua amada em seus braços. Mas ainda assim preferiu por a culpa no excesso de bebidas ingerido nas noitadas. Porém naquela manhã ali estava ele, ainda que virtualmente, de frente para sua amada. Pediu para que ela voltasse, para que deixasse ele cuidar dela como ela merecia ser cuidada.

Isadora parecia muito mais equilibrada que Pierre. Nem parecia que ela era a bipolar. O efeito do álcool em seu cérebro parecia muito mais nocivo que a bipolaridade dela. Tentou mostrar a ele que nunca o deixaria emocionalmente. Que sempre estariam ligados. Que sempre seriam um. A distância é que faria com eles se vissem menos e que ele pudesse ter a certeza que o coração dela sempre seria dele. E vice versa.

Ao teclar isto, Isadora provocou uma crise imensa de ciúmes em Pierre. Sem dizer mais nada, ele simplesmente saiu do MSN, desligou o computador e foi para o seu banho. Afinal a rotina que impusera a si mesmo tinha e seria cumprida. Isadora tinha o levado ao céu e – ato contínuo – conhecer os abismos abissais que circundam o inferno da alma de quem ama. E para quem ama esta transposição rápida pode ter conseqüências imprevisíveis.

No banho do nada resolveu cantar. Há quanto tempo não fazia isto? De onde vinha tanta alegria? Estaria ele bipolar também? Como alguém poderia sair de uma ira tão intensa como a que ele sentira minutos atrás para este súbito estado de alegria? Ficou indignado consigo mesmo mas por mais estranho que parecesse não conseguia parar de cantar aquela música.

Saiu do banho e enquanto se preparava para almoçar e ir ao escritório percebeu que a borboleta roxa pela primeira vez entrava na sua casa. Subitamente sentiu uma sensação estranha no peito. Aquela mesma sensação que sentia quando uma coisa muito boa ou uma coisa muito ruim iria acontecer com ele. Riu, como que agradecendo á borboleta pelo estado repentino de alegria que havia lhe dado. E com este humor mudado foi para o escritório.

Não demorou muito para que aquela alegria toda desaparecesse com as cobranças naturais que o serviço lhe impunha. De repente percebeu que não se conseguia mais concentrar no seu trabalho e que seu corpo pedia o álcool. Ele não queria ceder porque sua disciplina era uma coisa que valorizava muito. Mas alguma coisa estranha o empurrava para fora daquele escritório naquele final de tarde do início de agosto.

Sem saber o que era, cedeu á vontade e foi embora. Mas antes de ir para casa parou num bar onde nunca havia parado e pediu uma cerveja. Estava muito quente naquele dia de inverno. Pensou em como a ação do homem contra a natureza tinha mexido com as estações do ano e, do nada, fez-se a primeira interrogação daquele final de tarde: Será que a mudança climática não alterava também o humor e os amores das pessoas em relação á vida e em relação a elas mesmas? Riu. Não era dado a filosofias de bar sozinho. Começou a beber.

Mal tomou o segundo copo e a borboleta roxa invadiu aquele lugar. Riu mais uma vez. Era estranho mais aquela borboleta roxa cada vez que aparecia dava a ele uma sensação de felicidade poucas vezes experimentadas. E ali continuou o seu ritual. Estranhou que os demais fregueses não tentassem tirar a borboleta roxa do recinto. Aí ele começou a sua reflexão mais profunda. Seria ela um novo sinal do mundo da magia? Será que só ele enxergava aquela porque só ele estava interagindo com o mundo da magia? Que sinal, afinal, aquela borboleta roxa poderia trazer a ele?

Mal terminou de fazer a si mesmo a última pergunta e um barulho ensurdecedor tomou conta da rua. Era uma manifestação contra o aumento abusivo da passagem dos coletivos urbanos. A primeira reação que teve foi de ir embora. Queria sossego. Mas a borboleta roxa voou em direção áquela passeata.

Ainda que a borboleta roxa não tivesse voado em direção áquela passeata , alguma coisa o prendia ali. Não sabia explicar. De repente, olhou do outro lado da rua e viu que o Choque esperava com “ansiedade” por aqueles manifestantes. Sabia que o protesto iria terminar em pancadaria mas nada o fazia se mover daquele lugar. Estava irremediavelmente preso áquela cena. Mais que isto. Ali sua vida daria uma nova guinada.

Quando a passeata passou por ele, aquele aperto no coração voltou com mais força ainda. E sem se dar conta, com um autômato, pagou a conta e foi descendo a rua no fim da passeata. Uma força estranha o levara ao encontro que, inevitavelmente, acabaria em pancadaria. E ainda assim seguiu aquele cortejo.

Não demorou muito para que a polícia reprimisse a manifestação usando ao chamada “força necessária”. Ao ver a agressão ocorrendo, uma força estranha levou Pierre a interceder bruscamente naquele movimento e , sem que se desse conta, puxou pelos braços vários manifestantes.

Quando alguns policiais ameaçaram investir contra ele, num lampejo que há muito não tinha sacou a carteira da OAB – que raramente carregava consigo – e berrou aos quatro cantos que era advogado e invocou o Direito Constitucional dos manifestantes de protestar contra que o julgassem ilegal ou inconstitucional desde que não perturbassem á ordem e depredassem o patrimônio público e privado. O capitão que comandava a operação assustou-se com a atitude de Pierre e foi conversar com ele.

Do meio dos manifestantes sai uma jovem de pouco mais de 18 anos, jeito de cigana, usando uma bata roxa. Seus cabelos loiros e seus olhos verdes é que contradiziam as características ciganas. No peito um “bottom” de Che Guevara e outro com o símbolo do anarquismo. Na orelha brincos enormes em forma de Pentagrama.

Bem articulada, uniu-se a Pierre e foi falar com o capitão. A princípio parecia que aquela seria uma conversa civilizada. Não foi. Em pouco tempo os ânimos voltaram a se acirrar e capitão ordenou que prendessem a jovem por desacato a autoridade. Aquilo provocou um misto de revolta e passividade em Pierre. Revolta por saber que o capitão estava extrapolando no seu dever. Passividade porque percebera que se exaltasse ali, também receberia ordem de prisão. E lembrou que estava levemente etilizado.

Quando os soldados foram cumprir a ordem dada pelo superior, a revolta instalou-se entre os manifestantes e mais alguns foram presos. Pierre não perdeu tempo. Saiu do tumulto, pegou seu carro e foi até á delegacia esperar que o camburão chegasse com os detidos. Decidiu que iria advogar aquela causa porque não concordara com a arbitrariedade do militar. Não tinha ciência, ainda, que a magia havia novamente se instalado em sua vida.

Quando o camburão chegou naquela delegacia a primeira a descer foi a desconhecida loira. Ao ver Pierre ela o censurou com o olhar. Ele percebeu a censura mas uma estranha sensação invadiu seu coração. Uma coisa boa, como nunca tinha sentido antes. Nem mesmo quando tinha estado no auge com Isadora.

Preferiu ignorar o que sentira e entrou na delegacia. Apresentou-se como advogado de todos e , pela primeira vez, viu um sorriso tímido brotar nos olhos e nos lábios da loira desconhecida. O delegado o censurou pelo hálito etílico e pediu as procurações para que ele pudesse representar a todos. Um frio desceu sua espinha. Ele não tinha as procurações.

Subitamente perguntou ao delegado se eles poderiam constituí-lo como advogado naquele momento. A autoridade concordou. Como poucas vezes tinha feito, pediu um computador emprestado na delegacia, redigiu na hora as procurações, imprimiu-as e apresentou-as ao delegado. A primeira a assinar foi a loira e ele finalmente descobrira seu nome: Sarah.

Fez brilhantemente seu papel embora não conseguisse evitar que todos assinassem o termo circunstanciado. Ao sair da Delegacia entregou seu cartão a todos e pediu que o procurassem para falar sobre o ocorrido. Sarah chegou próximo dele e sem cerimônias disse que ele tinha sido “o cara” naquele dia e que ela fazia questão de pagar uma cerveja pra ele. Seu coração apertou. Ignorou novamente seus sentimentos e a magia. Mas aceitou o convite.

Para surpresa dos dois, ninguém mais quis ir beber com eles. Assim ficaram apenas os dois na mesa daquele boteco de décima categoria. Conheceram-se mais um ao outro. Ela ouviu por cima sua história e ele soube que ela tinha abandonado a faculdade de Farmácia para fazer novo vestibular para Ciências Sociais. Falaram mais sobre amenidades, mas o suficiente para ele ter o telefone dela e seu MSN. Riram de alguns bêbados do bar e foram embora. Cada um para sua casa. Ele devidamente acompanhado pela borboleta roxa.

Os dias seguintes amanheceram mais bonitos para Pierre. Uma alegria do nada invadiu seu coração. Acordava cantando, irradiando alegria, transbordando felicidade a todos. O estranhamento era geral. Para um homem que tinha se tornado um relapso, um quase farrapo humano, a mudança era radical.

Um dia ao chegar no escritório, sempre acompanhado da borboleta roxa, sua secretária fez um comentário que o fez entender como a magia estava agindo em sua vida. Comentou que a mudança era tanta que ele estava até mais bonito. Parecia uma borboleta que tinha saído do casulo. Ele riu. Mas a expressão borboleta o incomodou muito. Seria aquela borboleta a razão de sua felicidade? Mas como?

Isto o fez pensar durante boa parte do seu dia. Seu pensamento só foi interrompido quando a secretária o avisou que Sarah estava no escritório para falar com ele. O aperto no coração voltou novamente. A mão suou fria. Todos os poros palpitavam, mas ele se recusava a se render ás evidências. Afinal pouco tinham se falado no MSN e só sobre amenidades. Sabia que realmente ela era de família cigana, que tinha se decepcionado com a Universidade, que era apaixonada por política – nitidamente a de esquerda – e que adorava conhecer detalhes da História Política Nacional que ela tanto gostava mas não tinha vivido.

Entrou na sala e falaram demoradamente apenas sobre o possível processo que enfrentaria. Sarah queria saber os detalhes de como seria a audiência que ela teria que enfrentar – ao lado dos seus, agora, desinteressados companheiros – e quais as conseqüências que poderiam advir caso eles fossem condenados.

Depois de Pierre dar as devidas explicações um sorriso tímido apareceu no rosto de Sarah. Os olhos, em contrapartida, brilhavam como duas jades gigantes. Pierre num ato de extrema ousadia – para seu temperamento – resolveu perguntar se ela tinha algum compromisso. Ao que ela negou, ele torpedeou-a com um convite para tomar umas cervejas. Convite feito, convite mais que aceito. Imediatamente

Desta vez foram para um bar de certo nível, com música ao vivo mesmo no “happy hour”. Falaram mais de si. Contaram de suas mazelas amorosas. A cada revelação que um fazia ao outro, um mundo novo se abria para Pierre. E parecia que a recíproca era verdadeira para Sarah.

Finalmente entrou no ponto mais delicado. Falou superficialmente de Isadora mas disse o que sentia por ela. Ela riu, sem graça. Ele pensou que a perdera naquele instante. Ela revelou que passava pelo mesmo processo que ele. Sentiu um arrepio estranho tomar conta de sua alma. Sem que tivesse tempo de pensar em outra coisa ela o surpreendeu com uma pergunta. Se ele acreditava que uma pessoa pudesse – efetivamente – amar duas ao mesmo tempo. Sem pestanejar respondeu que sim, que acreditava. Sarah apenas disse que acreditava que aquilo poderia estar começando a acontecer com ela. Ele ficou sem ação. Entendera a magia, finalmente. Queria dizer que o mesmo processo estava acontecendo com ele mas ficou totalmente atado ás conveniências sociais naquela noite de 30 de agosto em que apenas um beijo no rosto separou os novos amantes.




14 de setembro



Os dias foram mais animadores para Pierre. Acordava todos os dias cantando. A felicidade estava mais do que estampada em seus olhos, em seu comportamento, em sua alma. Novamente havia deixado o álcool de lado e agora se sentia renascido, renovado, inteiro – talvez pela primeira vez na sua vida – e cada vez mais apaixonado por Sarah.

Evidentemente que esta paixão era mais do que sufocada dentro dele. Sua relação com Isadora não havia terminado formalmente e sentia por ela um grande afeto, carinho, amor mesmo. Isto era o mais estranho nele. Quanto mais lembrava de Isadora, mais feliz ficava com Sarah, com a presença ou mesmo “apenas” com a existência dela.

Agora como nunca acreditava e estava cada vez mais comprometido com o mundo da magia. As caminhadas haviam sido retomadas e mesmo sentindo que a velha árvore dava os últimos sinais de vida, ainda tinha nela uma confidente. A presença da borboleta roxa era cada vez mais evidente e cada vez mais presente na vida dele. Até sua rotina havia mudado completamente.

Ele agora tornara-se um assíduo freqüentador do MSN. Principalmente no período da tarde e da noite, quando falava com Sarah. Tinha com ele a nítida impressão que ela chegava do Cursinho e entrava só para falar com ele. Nestes momentos, novamente Pierre ria de si mesmo. Por que justamente aquela mulher, aquele doce de mulher estaria interessado nele?

No entanto as conversas, tanto por telefone quanto via MSN iam ficando cada vez mais quentes. As mensagens trocadas via celular iam dando a clara conotação de que um desejava o outro ardentemente e isto refletia no olhar dos dois nas poucas vezes que se encontravam. Na cabeça de Pierre uma pergunta fervilhava: se é para ser assim por que ao menos não nos beijamos?

Tinha, na verdade, medo de se ferir ainda mais. Estava com Isadora na cabeça e nada o faria mudar de decisão. O sentimento, porém, era cada vez mais intenso por Sarah. Nunca acreditou, de fato, que isto pudesse acontecer com duas pessoas. Ou melhor, três neste caso.

Evidentemente que Isadora nem sonhava com a existência de Sarah em sua vida. E o medo que Pierre tinha de perdê-la ao assumir o que sentia, de fato, por Sarah? Como explicar a Isadora que Sarah havia dado a vida que ele tinha perdido para o álcool e a vida boêmia? Como explicar para Isadora que Sarah havia lhe acrescentado um sentido novo e verdadeiro em sua vida? Como explicar a Isadora que sentia algo verdadeiro e doce por Sarah – até como nunca tinha sido com ela – e ao mesmo tempo a amava perdidamente? Não, Isadora decididamente não iria entender nada disto.

Os sentimentos, as emoções iam brotando cada vez mais fortes e numa profusão sem limites. Nada parecia que ia deter Sarah e Pierre. As conversas se tornavam cada vez mais intensas, cada vez mais entregues, cada vez mais apaixonadas. Toda a razão que Pierre impusera a si mesmo, ia vazando pelos seus dedos como a água vaza pelo ralo. Não havia mais dúvidas que um queria, desejava, necessitava estar com outro. Por mais que as convenções sociais não permitissem, era necessário que eles estivessem juntos. Até que por um destes “deslizes” que o coração nos impõe, Sarah digitou numa noite a frase “Eu te amo”. Pierre sentiu o mundo reviver dentro dele com uma força muito mais intensa do que havia sentido com todas as pessoas com quem se relacionara anteriormente. E respondeu o que a alma sentia. Que também a amava. Neste momento, pela primeira vez sentiu a borboleta roxa posando sobre seu ombro e descobriu-se o homem mais feliz do mundo.

E os dias foram passando...

A cada dia que passava Pierre dava claros sinais que transmitia mais vida, mais alegria, mais energia positiva a todos que o cercavam. Viu-se até fazendo um papel que nunca tinha feito antes. Um dia ao chegar no escritório deparou com sua secretária com o rosto inchado, como se tivesse chorado a noite toda. Antes mesmo de iniciar sua rotina diária – e agora nesta rotina estava entrar no MSN e esperar que Sarah entrasse – chamou-a para sua sala.

A pobre imaginou o pior. Como seu patrão andava muito amargurado, ela teve a certeza que seria despedida. Para sua surpresa, Pierre quis saber o que estava acontecendo com ela. Mas a pergunta foi em tom amistoso, de amizade, de quem tem intenção de ajudar. Nada parecido com o tom ríspido que ele tinha usado com todos que o cercavam recentemente. Ela abriu o jogo e contou que estava sofrendo por amor. Que o seu amado a desprezava sistematicamente.

Calmamente ele ouviu e com uma paciência de um monge budista anotou cada detalhe. Com uma voz conciliadora mostrou as mais variadas formas de resolver o problema. Ela chorou compulsivamente na frente do Patrão. Na hora ele lembrou de Isadora. Ela só chorava na frente dele quando o problema era enorme. E Sarah? Ocorreu também a ele que nunca tinha visto Sarah chorar. E acreditava que os olhos são o espelho da alma. Se alguém se recusa a chorar na sua frente é que sua alma esconde segredos e mistérios que você não quer dividir com ninguém. Mas Sarah ainda era uma figura recente na sua vida. Isadora não.

No entanto estava tão de bem com a vida que seria capaz de entender o problema de todos. Nada mudaria seu humor. Ou quase nada.

Ainda mostrando seu espírito de solidariedade disse á sua secretária que se ela não estivesse bem, que ela poderia tirar o dia de folga. Ela agradeceu e ainda fez vários elogios a ele. No final ainda prometeu que faria de tudo para que ele pudesse contar com ela no serviço. Iria se esforçar para que seus problemas sentimentais não afetassem sua vida profissional. Aquela frase foi um soco na cara de Pierre. Ele tinha se tornado relapso devido á sua vida sentimental e ela, mera empregada, iria fazer de tudo para que isto não acontecesse. Ainda assim sorriu para ela antes que ele o deixasse sozinho. Não demorou muito e sentiu a borboleta roxa pousar no seu ombro novamente.

Não demorou muito para que Sarah entrasse no MSN. Pierre estranhou porque aquele não era um horário convencional para que ela entrasse. E novamente ele se assustou quando ela, sem ser carinhosa como nos dias anteriores disse que precisava vê-lo e tomar algumas com ele naquele dia. Ele, tentando quebrar o gelo, ainda brincou com ela que talvez com “umas na cabeça” enfim rolasse o primeiro beijo. Ela prometeu que com ou sem daquele dia não escaparia o primeiro beijo. Ela havia descoberto que ele era a pessoa que sempre tinha procurado. Ainda que tivesse descoberto isto de uma forma dolorosa para ela.

A curiosidade invadiu Pierre. Forma dolorosa? Afinal o que Sarah tinha tanto para lhe dizer que pudesse ter lhe doído tanto assim? Pela primeira vez viu Sarah reclamar da vida e praticamente suplicar um encontro com ele. Era tudo o que ele queria e não iria perder isto por nada. Assim, marcaram de se encontrar ás 16h00min horas, no escritório dele.

Na hora marcada, Sarah estava lá. Falaram do processo e em pouco tempo deixavam de falar sobre coisas do mundo jurídico e passaram a falar apenas de ambos. Não demorou muito para que ambos se convencessem que aquele estava longe de ser o lugar ideal para falar dos sentimentos que ambos traziam dentro de si. Mais que isto. Falar das histórias que cada um trazia, para poder dividir. Falar de tudo, principalmente de si mesmo.

Foram para o bar e encontraram um casal amigo. Uma sensação de impotência tomou conta de ambos. Queriam estar sozinhos, mas como não tinham – oficialmente – nada em comum dividiram a mesa com os amigos e começaram a se falar pelo olhar. Em pouco tempo ficaram sozinhos. Não por muito tempo, mas tempo suficiente para saber que precisavam sair dali. O coração mandava que estivessem unidos. E a magia estava conspirando a favor deles.

Saíram e foram caminhando sem destino. Ao passarem pela primeira viela que encontraram, Sarah puxou Pierre para aquele espaço e sem que ele conseguisse dizer uma só palavra, ela o beijou com ardor, com paixão, com amor, com entrega, com devoção...

As estrelas piscaram mais fortes como elas costumam a piscar sempre que duas almas se unem pela eternidade e envolvida pela magia que é inexplicável aos seres humanos “normais”. Em outras palavras: ali o amor foi selado eternamente.




23 de setembro



Daquele beijo em diante o encontro das almas estava selado. O calor dos corpos estava refletido nos amantes. O que deixava ambos, principalmente Pierre, de mãos atadas era a questão social. Por mais que Sarah mostrasse que ambos podiam deixar de lado o senso comum e a hipocrisia social, Pierre oscilava muitas vezes entre entregar-se sem limites a Sarah e viver amando – ainda que á distância – Isadora.

Dentro dele sabia o que queria – era Sarah – mas tinha medo de tudo o que o cercava. Parecia que pisava em ovos a cada minuto, a cada instante. Por mais que desejasse estar sempre nos braços dela, tinha medo do que todos pudessem falar. Afinal de contas, por mais que suas atitudes mostrassem o contrário, não tinha rompido com Isadora. Ou seja, perante a todo seu círculo de amigos tinha namorada e esta não era Sarah.

O problema é que ele desejava Sarah a cada dia mais. E a cada situação contrária que se apresentava contrária, mais ele se sentia atraído por ela. A borboleta roxa agora instalara-se na sua casa e ele sentia uma alegria imensa cada vez que a via. Agora sim sabia que era a magia se manifestando a favor dele.

Mesmo as revelações de Sarah o deixavam cada vez mais apaixonado. A primeira foi sobre suas convicções e sobre a certeza que ela tinha de que ninguém era propriedade de ninguém e que as relações afetivas deveriam ser construídas sempre visando o bem do outro, o crescimento alheio, a felicidade mútua. Ou seja, Sarah abominava a idéia de ter um namorado que se julgasse seu “dono”.

Sarah era anarquista e um dia confessara a Pierre que não era nenhuma santinha. Ele riu porque entendeu claramente o que ela queria dizer. No entanto o encontro dos corpos que, normalmente, sela o encontro das almas não havia acontecido entre aqueles dois.

Eles se falavam todos os dias. Fosse pessoalmente, fosse pelo MSN, fosse pelo telefone eles sempre estavam em contato. A esta altura ambos já estavam completamente entregue ás evidências que um já era de outro, mesmo Pierre agindo ás vezes de forma fria com ela. Não que ele não quisesse, não a desejasse, não a amasse. Mas tinha medo de se machucar como tinha se machucado com Isadora.

Sarah, por seu lado, havia realmente descoberto a felicidade. Estava cada vez mais entregue a Pierre e não se arrependia desta entrega. Vivia cada dia como se fosse único. Era adepta do “Carpie Diem” e levava esta filosofia ao pé da letra. Porém o fato de Pierre aparecer em sua vida havia mexido tanto com ela que , muitas vezes. Não sabia mais explicar o que estava sentindo e a intensidade do que sentia.

Certa feita ela estava teclando com Pierre no MSN e reclamou que gostaria de sentir amada como ela o amava. Instintivamente ele teclou que ela poderia se sentir, porque ele nunca tinha amado ninguém daquela forma. Nem com Isadora tinha sido tão intenso. Sarah sentiu-se nervosa com aquela declaração. Sabia da existência de Isadora mas não gostava que ele sequer tocasse no nome dela. Percebia também que, várias vezes, Pierre se mostrava vacilante em relação á consumação daquele amor.

E, num ímpeto que rara vezes ela tinha pediu para que ele lhe desse uma noite de amor. Do outro lado do monitor, ele tremeu todo. Era o que mais queria, era o que mais precisava ouvir, era tudo que desejava ler. Enfim a magia estava conspirando ao seu favor. Sem titubear marcou com ela para se encontrar no seu escritório na segunda feira. Dali sairiam para um chopinho e depois estariam irremediavelmente ligados de corpo e alma.

Sarah não pensou duas vezes e marcou. Era uma quarta feira. Na sexta feira sua menstruação desceu. Ela sempre acreditou na magia e pensou que aquele fosse um manifesto aviso para que não unissem os corpos, porque as almas estariam unidas num processo irreversível. Ela acreditava estar pronta para uma relação assim, mas ele estaria?

A verdade é que um não ficava mais sem o outro. Um estava cada vez mais ligado ao outro e mesmo o fato de Pierre esconder Sarah de seus amigos e de sua relação ser apenas dos dois – como ele sempre fazia questão de dizer – não abalava o que ela sentia. Verdade que estava incomodada com aquela situação mas estava tão ligada a ele que não faria nada que fosse capaz de magoá-lo.

Ligou para ele no sábado entre lágrimas e contou o que seu organismo fizera com ela. Ele com a paciência de um monge budista mandou ela relaxar porque assim que este período passasse um seria do outro. Ela se acalmou e percebeu que realmente ele era o homem da vida dela. Quem teria tanta paciência assim com ela. Quem a entenderia, com toda sua complexidade, como ele a entendia? Quem compartilharia tantas coisas assim como eles compartilhavam? Decididamente ninguém.

E foi assim que na quarta-feira, dia 23 de setembro, ás 14h00min ela surgiu no escritório de Pierre com um sorriso que a deixava mais bonita do que era e disse, com a voz claramente embargada pela emoção que estava pronta para ser dele.

Pierre não pensou duas vezes. Parou tudo que estava fazendo e foi para sua casa. No caminho, passou num supermercado e comprou alguma bebida para os novos amantes desfrutarem ao máximo aquele momento. Na saída fez menção de comprar preservativos no que não teve o consentimento de Sarah. O olhar dela era claro: queria senti-lo inteiro dentro dela. Queria cada gota daquele amor percorrendo todo seu ventre como nunca provara antes. Queria que tudo fosse mágico, intenso, vivo...

Mal chegaram á casa de Pierre e foram se despindo... primeiro a blusa vermelha, depois a camiseta branca, depois a calça jeans. Ela ia retribuindo, primeiro a camisa pólo verde, depois a calça. Logo estavam seminus. Ele de cueca branca, ela de calcinha e sutiã vermelhos. O mundo parava naquele instante. Quando tirou o sutiã, não acreditou no que viu: uma borboleta roxa tatuada no seio esquerdo de Sarah. Era a comprovação que ele precisava ter que aquele amor era supremo, intenso, eterno, verdadeiro.

E sem esperar mais nada logo os dois estavam vestidos apenas com a alma e deixaram que o amor acontecesse de forma linda, plena, rica, como nenhuma vez um tinha experimentado uma sensação igual.



29 de outubro


A manhã daquela quinta-feira amanheceu mais feliz. Abraçados, o novo casal dormia um sono mágico. Durante toda a noite fizeram amor com uma loucura extrema. Verdade que Pierre estava a quase dois meses sem sexo o que era uma verdadeira novidade pra ele. Sarah parecia estar sorrindo. A noite parecia envolvê-la de maneira protetora. Tarde e noite de amor. Poucos amantes se dão a tanto prazer num dia só...

Pierre abriu os olhos – ele não queria abrir com medo que tudo aquilo que passara nas últimas horas fosse um doce sonho como jamais tinha sonhado – e viu sua amante nua, ao seu lado. Era verdade, tudo havia acontecido de forma linda. Admirando ainda mais aqueles cabelos loiros, aqueles seios pequenos com a borboleta roxa não teve coragem de acordá-la. Levantou e preparou um café reforçado para os dois. Pensou em fazer sua caminhada e em dividir com sua amiga árvore sua imensa alegria. Desistiu. A última vez que fizera isto, Isadora havia desaparecido.

Depois de fazer o café foi até o quarto e viu que sua nova amada lá havia levantado. Estranhou porque ela estava diante do espelho muda, calada. Parecia que conversava com sua imagem refletida ali. A cena fez com que um frio descesse pela espinha de Pierre. Será que tudo não passaria de mais uma ilusão? De repente, como se tivesse saindo de um surto, ela virou, sorriu pra ele, deu-lhe um beijo e disse que estava faminta porque a noite tinha sido mais do que incrível.

Aquela mudança de atitude repentina de Sarah fez com que Pierre lembrasse – ato contínuo – de Isadora e de sua bipolaridade. E uma sensação de que a tivesse traído também invadiu a sua alma que até então explodia de alegria e amor. Mas Isadora agora estava preocupada exclusivamente com sua carreira. Nem ligava mais pra ele. Não demonstrava o menor afeto sequer. Ele tinha que ser feliz. E tinha descoberto naquela tarde e noite que a felicidade atendia pelo nome de Sarah.

Tentando apagar da mente a sensação que teve ao ver sua amada completamente absorta diante do espelho, os dois tomaram café da manhã juntos e , como de costume, riram muito de coisas que disseram desde que haviam se conhecido. Mas Pierre explodiu numa grande gargalhada quando Sarah revelou a ele que era ninfomaníaca. Que quanto mais era possuída, mais queria ser. Era insaciável mesmo.

Sarah percebeu que Pierre estava num estado pleno de felicidade. Ali, diante dela, estava a pessoa que ela sempre havia procurado nos relacionamentos anteriores. Doce, atencioso, romântico, dedicado a ela e aos seus amigos. O que querer mais? E sem que desse a menor chance a ele, tentou de mostrar leu lado ninfomaníaco levando de volta á cama.

Enquanto se amavam com volúpia, Sarah perguntou se Pierre a amava. Pierre fechou os olhos, sorriu, abriu de novo e disse que sim, que já havia dito isto várias vezes a ela e que seria capaz de dizer quantas vezes mais fosse preciso. A atitude dele foi um balde de água fria nela. Por que havia fechado o olho? Estaria ele pensando em Isadora? No entanto, seu lado ninfomaníaco fez com que conduzisse o ato de união eterna das almas até o final com a maestria de sempre.

Subitamente Pierre se deu conta que estava atrasado. Tomou outro banho e se vestiu rapidamente. Sarah fez a mesma coisa. Os olhos de Sarah tinham o brilho da felicidade e da dúvida ao mesmo tempo. Os de Pierre tinham a certeza de que ele havia encontrado o amor.

No caminho para o escritório, Pierre ainda deixou Sarah no Cursinho. Quando pararam em frente Sarah tentou dar um “selinho” nele, mas ele virou o rosto. Isto a feriu profundamente. Por que ter medo de dividir com todos a felicidade? Por que não demonstrar publicamente o que se sente e o que se vive? Afinal se os amigos dele eram amigos mesmo iriam entender perfeitamente o que os dois estavam vivendo. E Pierre, nitidamente, evitava demonstrações públicas de afeto com Sarah. Ela percebeu isto. No entanto, o amor que nutria por ele era tão grande que ela decidiu correr todos os riscos para estar sempre ao lado do seu homem.

Pierre, por seu lado, vivia um misto de angústia e de realização pessoal. Nunca tinha encontrado ninguém tão fascinante, tão politicamente engajada – e ele adorava debater questões políticas, o que Isadora detestava – tão ligada ao mundo da magia e da filosofia – duas outras paixões dele - . Enfim era impossível dizer que Sarah não o completava em todos os sentidos. Mas o que ele iria fazer em relação a Isadora? Isto o incomodava. Por mais desprezado que tivesse sido por ela, não conseguiria terminar assim, uma relação que havia sido tão forte. Verdade que Sarah ocupava muito mais seus pensamentos que Isadora. Verdade que Sarah o preenchia em todos os sentidos, muito mais que Isadora. Mas não sabia administrar a relação a três. E não queria perder Sarah por nada.

Ah, as contradições humanas que fazem nossa espécie ser altamente interessante...

Os dias se seguiram cada vez mais apaixonados. A relação entre os dois era cada vez mais intensa, cada vez mais ligava-os ao infinito e nem eles se davam conta disto. Um dia ele comentou que queria ver o pôr-do-sol com ela. Ela o beijou e disse que seria maravilhoso se isto acontecesse. Ela abriria mão de tudo para dividir este momento mágico com ele. Pierre percebeu, que finalmente a estava conquistando.

Foi para o escritório e deixou seus pensamentos em relação a Sarah um pouco de lado. Pensou que isto fosse possível. No entanto, cada minuto daquela manhã era contado. Não via a hora que ela saísse do cursinho e que ele pudesse ligar pra ela, ou que ela entrasse no MSN. De repente, teve a visão da borboleta roxa praticamente colada em seu ombro, como quem cobrasse uma atitude, um gesto mais intenso, uma palavra melhor dita, enfim algo que fizesse com que Sarah se sentisse menos desconfortada. Mas Pierre estava cada vez mais vencido pelas convenções sociais e temia apresentar Sarah como sua namorada sem ter rompido oficialmente com Isadora. Quem iria saber que Isadora não dava mais notícias, não ligava, sequer entrava no MSN? Quem iria entender que ele se sentia completamente abandonado por Isadora, mas completamente feliz ao lado de Sarah?

Na espera angustiante que dessa a hora para falar com Sarah, o mundo conspirou novamente contra os dois. Pierre recebeu um telefonema que um de seus melhores amigos estava em apuros e precisava de seus conselhos profissionais. Ele tentou despistar mas o amigo parecia desesperado e queria almoçar com ele naquele dia. Almoçar? Não poderia ser jantar? Não, não poderia. E esquecendo de deixar algum recado, um SMS que fosse, foi ao encontro do amigo.

Não demorou muito e Sarah começou a ligar no celular de Pierre. Ele não a atendeu. Ouvia com atenção o problema do amigo. Ela começou a entender – talvez erradamente – que ele começava a evitar. Que o príncipe que ela havia imaginado havia virado um sapo. Por que ele não a atendia? Por que tanto desprezo assim? Afinal, o que ela havia feito de errado? O que ela deveria fazer? Sair da vida dele ou exigir explicações de tudo? Precisava tomar uma atitude.

Ele precisava dar um basta naquela situação. Ele queria estar com ela o tempo todo mas não tinha coragem de enfrentar tudo e todos por ela. Achava mais cômoda esta situação. Nem imaginava que Sarah estava realmente o amando e queria viver “apenas” a eternidade com ele. Mal sabiam os dois que a eternidade já havia selado o pacto daquelas almas aflitas.

Porém, o ser humano na sua imensa curiosidade de interferir nas coisas acaba fazendo uma estupidez atrás da outra. Pierre fez uma dessas besteiras inomináveis. Naquela noite ao chegar em casa, antes de ligar para Sarah e explicar o que havia acontecido, ele resolveu verificar se havia novidades no seu Orkut. Depois de muito tempo havia um recado de Isadora dizendo que a amava e que estava morrendo de saudades. Pierre respondeu o recado com as mesmas palavras.

Enquanto ele tomava um banho e pensava em ligar para Sarah e convidá-la para desfrutar o fim daquela noite com ela, a sua nova amada via o recado na página de Pierre e sentia o coração rasgar numa chaga enorme. Foi uma crise de choro que ela não se conteve. Quando ele ligou pra ela e viu o porquê daquelas lágrimas tão sentidas um remorso sem limites tomou conta de sua alma. Seu coração estava cortado. A última coisa que queria fazer era magoar Sarah, mas sua atitude impensada e precipitada seu comodismo haviam marcado profundamente aquela relação. A vontade de Sarah era por um ponto final em tudo aquilo. Pela primeira vez Pierre realmente sentiu medo de perdê-la e de tudo que ela significava pra ele.

Novamente sua companhia naquela noite foi a bebida... Não se perdoava por ter agido com tamanha mesquinhez e por estar acomodado em uma relação que tinha sacudido cada poro do seu corpo, arrepiado cada pêlo, mexido com ele por inteiro e ele apenas satisfazia ás convenções sociais porque a relação dele com Isadora era mais longa e mais “aceitável” no seu círculo de amigos.

Como sair daquela situação? Sarah era a antítese do que eram seus amigos. Conservadores, tradicionais. Ela era liberal, liberada, politizada, anarquista, ninfomaníaca e muito mais nova que Pierre. Aliás, ela era oito anos mais nova que Isadora. Ele percebeu que seu mundo de felicidade estava começando a ruir sobre a sua cabeça. Sarah por sua vez desdobrava-se para ser de Pierre. Queria que, ao menos, os amigos mais próximo e que pareciam serem os melhores amigos dele dividissem com os dois aquela felicidade plena.

Ela procurava formas das mais convincentes para ficar ao lado dele. Sentia bem com a presença de Pierre. Seu coração batia mais feliz, sua alma ficava em festa cada vez que os olhares se cruzavam. Neste ponto Pierre correspondia plenamente as expectativas dela. Quando estavam a sós a felicidade gritava silenciosamente. Quando estavam com os amigos, os olhares cúmplices diziam tudo. Mas Sarah queria a verdade na relação. Queria que Isadora soubesse da existência dela na vida de Pierre e que concordasse em dividi-lo com ela. Cansou de dizer a ele que não queria, nem exigia exclusividade mas queria uma relação limpa, honesta, transparente.

Pierre administrava aquela situação e percebia que as coisas, a cada dia, fugiam ainda mais do seu controle. Desejava estar com Sarah sempre e nem quase lembrava mais de Isadora uma vez que ela dava sinais de vida uma vez ou outra. A magia parecia mais uma vez conspirar a favor de Sarah e Pierre. Então porque ele não tomava uma atitude definitiva em relação a ela? Por que tinha tanto medo de assumi-la e ser feliz em toda sua plenitude?

O que Pierre havia esquecido ou não estava mais levando em conta era o fato de que Sarah também vinha de uma relação que tinha marcado muito sua vida. Ricardo tinha sido seu primeiro homem, seu primeiro amor. Também ele não estava mais se dando conta que a borboleta roxa estava aparecendo menos pra ele. Justo a borboleta roxa, o símbolo das bruxas na cultura celta. Exatamente aquela que ela tinha tatuado no seu seio esquerdo. Mais uma pergunta sem resposta: Por que abandonar sinais tão evidentes do que está acontecendo á nossa volta?

Nos dias que se seguiram, Pierre percebeu que Sarah estava se distanciando dele. E a última coisa que ele queria era perder aquela que havia injetado vida, amor, felicidade, tesão na vida dele. No entanto a dúvida permanecia ainda mais cruel em sua cabeça: como explicar aos mais próximos a relação intensa que vivia e que sentia? Como abrir o jogo com Isadora? Dúvidas são as maiores inimigas do amor. Não há relação que sobreviva diante de dúvidas e incertezas.

29 de outubro. Ao chegar ao escritório recebeu um recado que era para ligar pra Isadora. Sim, ela havia dado sinal de vida. Ele ligou e pela primeira vez Pierre ouviu Isadora chorando, lamentando todas as escolhas que tinha feito. O mundo desabou sobre ele. E agora? Não demorou muito e encontrou Sarah e Isadora no MSN. Naquele dia precisava mais do que nunca de Sarah. Isadora cobrava atitudes e ele não estava certo de mais nada. Sarah o tratava com frieza e dizia que estava escrevendo um e-mail pra ele onde colocaria tudo o que estava sentindo. A necessidade do álcool ficou mais evidenciada quando Isadora saiu xingando Pierre. Depois leu o e-mail de Sarah. Nele ela dizia que precisava de um tempo pra sua cabeça. Dizia que amava Ricardo e o amava também e sempre iria amar os dois, indistintamente. Mas precisava dum tempo pra ela mesmo. Pierre, sem ter o que fazer, desesperado embriagou-se com uísque e barbitúricos. Era a primeira vez que tentava se matar. Sem sucesso, ainda...